A infantolatria e a invenção do TDAH

Servindo a seus interesses comerciais a indústria farmacêutica tem criado e financiado várias pesquisas tendenciosas objetivando produzir provas da existência concreta do TDAH, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Tenta provar, além disso, que se trata de uma doença e que deve ser medicada com dimesilato de lisdexanfetamina, uma anfetamina.

O médico que criou o termo TDAH, Leon Eisenberg, foi um renomado psiquiatra infantil americano, com inúmeros livros e artigos publicados. Depois de aposentado tornou-se Professor de Medicina Social e psiquiatra Emérito (servindo ativamente – palestrando, pesquisando, escrevendo, e sendo mentor), no Department of Global Health and Social Medicine da Harvard Medical School na Longwood Medical Area de Boston.

Em fevereiro de 2012, a publicação alemã Der Spiegel (https://www.spiegel.de/) informou, em sua reportagem de capa, que Eisenberg em sua entrevista final, sete meses antes de sua morte, afirmou que o TDAH foi o primeiro exemplo de uma doença fabricada.  Eisenberg observou também que, em vez de prescrever uma “pílula”, os psiquiatras deveriam determinar se existem razões psicossociais que podem conduzir a esses problemas de comportamento. Em outras palavras, seria uma característica comportamental adquirida e não uma doença. Poderíamos dizer que é mais próxima de um sintoma produzido por uma causa.

A maioria das crianças tende à hiperatividade, mas tem uma capacitação, vinda de um condicionamento, para manter-se quieta em determinadas circunstâncias e usar sua energia em outras. Para quem sente desconforto diante do termo condicionamento, é bom lembrar que ele faz parte constante da humanização da cria humana, a começar pela educação dos esfíncteres, o treinamento para dormir em horários determinados,  a comunicação através da fala e vários outros para a alimentação e higiene.

Seria Leon Einsenberg, um intelectual tão sério e reconhecido, capaz de inventar uma doença? Não parece ter sido o que ocorreu. Ele indicou a existência de comportamentos problemáticos, que nomeou de TDAH, mas não os classificou como doença. Para fazermos um paralelo, a psicose é uma patologia que precisa ser medicada, enquanto o transtorno borderline é um problema de personalidade que não responde à medicação, embora a indústria farmacêutica e os psiquiatras em geral costumem medicar os chamados borders. Medicam para melhorar a vida dos familiares, porque seu comportamento é extremamente incômodo e inadequado. O medicamento rebaixa a agitação e a agressividade como um analgésico rebaixa a dor de cabeça. Incômodas e inadequadas são também as crianças sem nenhum limite, que não prestam atenção, não obedecem ordens nem param quietas durante os períodos de aulas.   

De fato, até a década de 60, pelo menos, jamais se ouviu falar sobre TDAH. As crianças viviam literalmente soltas, correndo pelas ruas, andando de bicicleta, pulando corda, subindo em árvores, gastando a energia, que têm sempre em excesso, da forma natural e saudável.  Na hora de fazer os deveres ou de estudar, eram obrigadas a isso pelos pais e pronto. Algumas se saiam melhor e outras pior, mas de algum modo entendiam que era preciso fazer o necessário. Se uma criança não se mostrava inclinada aos estudos, era encaminhada para um curso técnico ou um trabalho. Isso não constituía fracasso ou desastre, mas alternativa possível.

Na época anterior à pílula anticoncepcional, os casais acabavam tendo um número grande de filhos e precisavam sustentá-los e educá-los, além de manter um clima minimamente aceitável numa casa com cinco, oito, dez crianças com pouca diferença de idade. Isso fazia com que se fizessem respeitar, não havia outra alternativa. Os filhos obedeciam por medo de perder o amor dos pais ou de receber as consequências de seus atos.

Quando o sistema mudou do Capitalismo de Produção para o Capitalismo de Consumo, o número de filhos por casal foi sendo reduzido. Com o advento da pílula anticoncepcional e o ingresso das mulheres no mercado de trabalho isso se acentuou. Esses acontecimentos introduziram mudanças de comportamento na infância. Por um lado, o filho se transformou em uma espécie de produto narcísico que devia ser apresentado ao mundo como prova de sucesso. Por outro, sendo o foco dos maiores investimentos do casal, passou a ser em seu “maior tesouro”. Esse “maior tesouro” devia apresentar índices de seu valor obtendo sucesso em várias atividades. Ao lado disso não recebia regras ou limites porque os pais queriam a todo custo evitar que seu “maior tesouro” sofresse. Como estudar não é exatamente prazeroso e exigia disciplina as falhas começaram a surgir e, claro, precisaram ser corrigidas. Os pais começaram a terceirizar a educação para escolas, psicólogos, neurologistas e, quando surgiam problemas de solução mais complexa, psiquiatras. Houve primeiro uma grande onda de diagnósticos de dislexia. Rapidamente os pais preferiram o TDAH.

Esse tornou-se um nicho muito rentável e, ao longo dos anos, vários profissionais foram se especializando nele, grandes centros foram fundados, começou-se a ganhar muito dinheiro impulsionado pelos laboratórios. O TDAH fez com que, só no Brasil, fosse registrado o aumento de 775% no consumo de Ritalina em dez anos. Isso somado à vida de pais que trabalham e cada vez menos têm tempo para educar os filhos transformou a sigla TDAH na salvação da família e dos negócios. Em primeiro lugar os pais, culpados por ter pouco tempo e não dar suficiente atenção à prole, tornaram-se tolerantes em excesso, resultando em crianças com comportamentos inadequados. Acabam dando consequências de menos e premiações demais, o que dá aos filhos uma falsa visão da realidade do mundo. Em segundo, os espaços de vivência foram drasticamente reduzidos. As crianças passam os dias em escolas e, quando estão em casa, geralmente apartamentos, estão restritas a espaços onde não podem gastar toda sua energia. Quando se cria o TDAH eles ficam totalmente isentos de responsabilidade sobre a forma como os filhos se comportam porque toda a responsabilidade recai sobre a “doença”.

Os pais, que chegam cansados à noite de sua jornada diária no trabalho, passam a maior parte do tempo no celular, televisão ou computador, com pouquíssima vontade de aguentar ou educar os filhos. A elevação do filho ao status de “maior tesouro” origina uma espécie de infantolatria, onde a visão dos pais sobre os filhos é idealizada e nada crítica, o que só agrava o quadro geral.

O que organiza a criança internamente é saber o que é aceitável ou não em termos de comportamento. Os pais têm que deixar as regras claras e fazer com que sejam cumpridas, o que dá um enorme trabalho. Os pais podem achar engraçada a criança que se nega a obedecer, mas será que os professores vão aceitar? Podem achar necessário atender a criança ou adolescente em todas as suas exigências, mas será que o mundo, no futuro vai agir do mesmo modo? Esse é um problema fundamental. Quando a criança aprende desde cedo que não pode se comportar de forma inadequada nem pode obter tudo o que quiser, adquire uma ferramenta interna importantíssima: aprende a lidar com a frustração encontrando saídas criativas e não violentas. Adultos vivem melhor quando lidam com suas frustrações sem recorrer sistematicamente a drogas ou explosões de violência. Quanto mais cedo essa ferramenta for introduzida, mais fácil será implantá-la, porque crianças têm enorme maleabilidade psíquica. É das tarefas mais difíceis essa implantação em idades tardias.

Importante frisar que não basta criar um sujeito disciplinado, é preciso criar introduzir a criança em legalidades que a tornem também um sujeito ético. Empatia, solidariedade, honestidade, não são valores inatos, devem ser cuidadosamente implantados desde muito cedo.  

Quase tudo que fazemos habitualmente e nos parece simples, é resultado de um treinamento em áreas específicas do cérebro. O cérebro é uma enorme glândula que produz vários hormônios respondendo a estímulos enviados por pensamentos. Mas nem sempre um mesmo estímulo produz um tipo semelhante de sensação em dois indivíduos distintos. Tomemos um dia frio e chuvoso como exemplo. Há quem ache que é um dia aconchegante, delicioso para tomar um bom chá vendo um filme. Há quem ache que é um dia absolutamente deprimente. No entanto o fenômeno é o mesmo. O que mobiliza esses hormônios é aquilo que cada um se diz sobre a realidade. Um texto denso pode significar para alguém um desafio e para outro um obstáculo ou algo a ser evitado.

O sucesso em transpor etapas vai depender do treinamento de determinadas áreas do cérebro para aceitar deveres como algo cujo cumprimento gera satisfação e não desprazer absoluto. A impossibilidade de postergar o prazer, o imperativo de obtê-lo apenas de fontes que o forneçam de forma imediata, é uma potente matriz de insatisfação e irritabilidade. Quando a criança durante a infância é incumbida de pequenas tarefas, como arrumar a própria cama, manter seu quarto organizado, deixar o banheiro em ordem após o banho, desenvolve áreas que serão úteis no momento de enfrentar a vida tal como ela é, ou seja, onde esforços são usualmente necessários para que se consiga algo desejado. Estudar pode não ser prazeroso, mas o diploma pode propiciar um emprego com ganhos que permitam desfrutar de uma boa casa, viagens ou seja o que for que se valorize como objetos de felicidade. Tarefas desprazerosas temporárias são enfrentadas para obtenção de um prazer maior e mais duradouro.   

L.B., um de meus pacientes conseguiu formar-se em direito, colando e fazendo trabalhos em grupo, mas não conseguia obter nota na OAB para advogar. Fica todo o tempo em redes sociais e, quando não, gasta um tempo enorme imaginando a cobertura que comprará um dia, os carros maravilhosos e as viagens a Ibiza. Ou seja, fica totalmente siderado por tudo que possa lhe dar prazer imediato. Antes de iniciarmos nosso trabalho ele tomou Ritalina por longo tempo. Embora a medicação aja no sentido de aumentar a concentração,  não aumenta a capacidade de enfrentar o desprazer.

As áreas do cérebro, grosso modo, funcionam como a musculatura ou ossatura. Se uma criança é impedida de andar desde o nascimento até os 3 anos, por exemplo, poderá chegar a andar com fisioterapia e treinamento, mas não com a facilidade de uma criança que aprendeu a andar na idade apropriada. O mesmo acontece com o treinamento para aceitar a parte, digamos, desprazerosa do cotidiano e da vida como um todo.

Para os psiquiatras nada melhor do que o adestramento químico. Afinal, as principais características são a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade. Mas note que essas crianças são desatentas apenas às aulas. Nos joguinhos, chats e outros entretenimentos fixam-se com maestria. A hiperatividade é a normalidade de qualquer criança e a impulsividade é total falta de senso de realidade, senso este que tem que vir de uma instrumentalização, bastante trabalhosa, a ser fornecida pelos pais, que vivem ocupadíssimos. Meu paciente L.B., adulto, não desviava a atenção nem perdia o foco se estivesse numa rede social ou planejando o roteiro de uma viagem complicada. Só não conseguia escrever ou revisar os processos que eram, segundo ele, extremamente chatos e aborrecidos.

Evidentemente há centenas de artigos tentando provar que Leon Eisenberg foi mal entendido em sua última entrevista. Afinal a indústria farmacêutica financia profissionais, principalmente na área da psicologia cognitivo-comportamental e os cursos de especialização em TDAH, bem como seus especialistas, proliferam às mil maravilhas.

A medicina comprou o discurso dos laboratórios e os médicos garantem que ele não acarreta problemas. Isso deixa os pais numa posição de desconforto e dúvida. Antes de decidir seria interessante lembrar que não existiam esses medicamentos de efeito final suspeito há 70, 60, 50 anos e as pessoas que atingiram essa idade conseguiram transpor as etapas esperadas e, em sua enorme maioria, concluíram seus estudos.

Cristina Mega

2 thoughts on “A infantolatria e a invenção do TDAH”

  1. Excelente artigo , muito esclarecedor e base para nos indagarmos , como pais, o que estamos fazendo com nossos filhos em termos de educação além da sala de aula, dos terapeutas , assim como de tempo dedicado a eles !

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