Direita e esquerda: a igualdade na diferença

Talvez sejam enormes as diferenças entre os governos do PT e de Bolsonaro, mas há uma semelhança que chama a atenção: tanto em um quanto em outro instaurou-se uma demonização do chamado jornalismo investigativo. Uma vez no poder, tão logo seus erros e desmandos comecem a ser apontados, tanto um quanto outro mostram a idêntica tendência a proibir seus eleitores de acompanhar informações através desses veículos.  Como o próprio nome diz, esse jornalismo tem por objetivo investigar e denunciar o que acontece nos bastidores da política, focando em erros, mentiras e falcatruas. É esse seu papel, sua função. Assim, podemos dizer que a democracia depende, muito mais do que se possa imaginar, desse tipo de trabalho.

O medo que os partidos mostram tem muito fundamento. Os maiores escândalos de corrupção no governo do PT e no de Bolsonaro foram descobertos e denunciados pela imprensa. Talvez por isso se empenhem tanto em desqualificá-la. Mais do que corrigir os próprios erros essa política, que busca antes de tudo servir a seus próprios interesses, se ocupa em ocultá-los. Por isso é preciso acusar a imprensa de pertencer ao extremo oposto – a direita diz que serve à esquerda e vice versa – ou de ser parte de uma conspiração que vive de mentiras.

É claro que desqualificar não bastaria. Então desviam seus adeptos e correligionários para fontes de informação, criadas e financiadas pelo próprio partido, grupo político ou econômico. São jornais online, canais do Youtube, rádios e canais de TV que fornecem notícias genéricas, como jogos, acontecimentos políticos pelo mundo e notícias locais, junto a uma quantidade enorme de notícias falsas.

Para uma visão imparcial seria ideal que nos informássemos no maior número de fontes possível. Na época do PT, além do jornalismo investigativo, era importante ler a Carta Capital, Diário do Centro do Mundo, Brasil 247 e outros. Durante o período Bolsonaro  foi bastante elucidativo acompanhar Brasil Paralelo, Jornal Cidade online, Grupo Record, SBT, Jovem Pan e outros. Além disso pode-se seguir, pelo Twitter por exemplo, o maior número possível de políticos e jornalistas de cada tendência.

Quando um grupo se restringe às informações originárias de um único tipo de fonte constitui-se a chamada Bolha. Nela, todas as informações são filtradas para que os adeptos permaneçam fiéis ao lado em questão. Nessas fontes tendenciosas propaga-se a ideia de que os governantes fazem um trabalho perfeito e o país está em pleno vigor.

Uma grande parte dos humanos tende a fugir de qualquer informação que contradiga suas crenças e valores. Sua propensão é buscar refúgio entre os que pensam da mesma forma. Isso vale para a religião, a política e mesmo para o futebol. Entre seus iguais sentem-se acolhidos, entre os demais são tomados por desconforto e estranhamento. É como uma crença de que estando em determinado grupo adquirem uma espécie de blindagem contra seus fantasmas. Para um saudável funcionamento de nosso sistema cognitivo é preciso que lutemos contra isso e exercitemos o senso crítico. Sem isso, o risco de entrarmos em oposição e conflito com os que pensam de forma oposta é quase inevitável.

Vários fantasmas foram criados, por exemplo, nos Estados Unidos, para assustar a população e demonizar o comunismo por medo de que a revolução Russa se espalhasse pelo globo. Ali, a “caça aos comunistas” foi chamada de onda do “medo vermelho” ou Era McCarthy (macartismo), em referência ao senador Joseph McCarthy, um dos grandes promotores dessa política. Dois ou três anos depois da Revolução Russa, em fóruns anticomunistas nos EUA e noutros países já se tornara relativamente comum ouvir a ideia de que os comunistas comiam bebês. No anticomunismo brasileiro atualizou-se o termo “comer” para “abusar sexualmente”.

Qual o maior problema? Quando uma informação falsa é lançada em mídias patrocinadas por um viés ideológico, os integrantes da Bolha recebem-na e assumem imediatamente que se trata de uma verdade inquestionável. Afinal, emana do único lugar que consideram cem por cento confiável. Como são, no geral, baseadas em teorias conspiratórias, não importa que não tenham comprovação, elas geram ora certezas absolutas junto a enorme medo. A maior parte dos integrantes também não busca informações de confirmação porque acredita que, fora desses grupos, todos são inimigos.  Assim, essa informação falsa passa a ser divulgada em larga escala em redes sociais e grupos de Telegram, Whatsapp, através de textos, vídeos e áudios. Elas dão, a cada um que as recebe, a sensação de serem únicos, de estarem investidos da missão de propagar uma verdade.

Logo a seguir o jornalismo investigativo e a oposição reagem às mentiras divulgadas, buscam provas que embasem o desmentido e demonstram que a notícia é falsa. A questão é que as provas de que uma notícia é falsa jamais penetrarão na Bolha. Estão convencidos de que, fora da Bolha, tudo é suspeito, de que todos os canais do jornalismo investigativo fazem parte ou de uma gigantesca conspiração Internacional ou de uma conspiração nacional contra seu escolhido.

São coisas no mínimo engraçadas, mas que se tornam assustadoras. Citarei algumas que ouvi de pacientes e amigos. Uma conspiração internacional envolvendo Soros, Bill Gates e a China, para implantar chips que tornariam os humanos submissos à vontade deles. O projeto seria acabar com dois terços da humanidade, coisa que claramente é o contrário do que interessaria, principalmente à China, que produz, exporta e não quer que o número de consumidores diminua.

Nesta última campanha espalhou-se que seriam criados banheiros unissex nas escolas, que o comunismo incentiva os pais a masturbarem os filhos a partir dos sete meses. Que casas com mais de sessenta metros quadrados seriam divididas com famílias sem moradia. A mais interessante seria a obrigatoriedade de aulas de “ideologia de gênero”, onde seria ministrada uma matéria que ensinaria os alunos a se tornarem gays.  Veja que essas pessoas realmente acreditam no eufemismo da “opção sexual”, não têm a menor ideia de que homo e heteroafetiva são possibilidades para a sexualidade humana normal.

O algoritmo que propulsiona a formação da Bolha funciona como um loop de feedback em tempo real que leva você em direção ao que ele identifica como os interesses da sua bolha. Ele decide o que será sugerido para os usuários. É nelas que as notícias falsas ganham força, principalmente porque as pessoas não diferenciam adequadamente as fake news, elaboradas por fontes duvidosas, das notícias jornalísticas.

Numa situação de extrema polarização como está ocorrendo no Brasil a situação tende a tornar-se trágica já que o fanatismo infla o narcisismo e a arrogância, dois péssimos componentes do psiquismo humano que transformam o diferente em inimigo, muitas vezes a ser exterminado.

Casamento e sexo, o grande paradoxo

Não é fácil definir exatamente o que nos atrai em nosso par amoroso, ou o que nos atrai eventualmente em alguém. É comum dar o nome de química a esse conjunto invisível que aciona nosso interesse. Alguns dizem que o fundamental é a inteligência, outros a integridade, ou o talento, mas para que a relação vá além do fraterno, para que o corpo e a emoção sejam também acionados, é preciso que haja algo além disso. Mais ainda, é preciso que esse algo mais ocorra em ambos os lados. O número diário de casamentos nos diz que, embora não seja exatamente fácil, ocorre um bom número de vezes.

          O início é um período maravilhoso, os apaixonados se empenham em encantar-se com elogios, flores, presentinhos, surpresas e jantares. As afinidades surgem a cada momento, fala-se em destino enquanto o envolvimento proporciona um sexo fantástico. O amor parece infinito e é tão grande a sensação de completude que os apaixonados chegam a sentir-se como se houvessem se tornado um. Costumo dizer que essa fase deliciosa é uma espécie de brigadeiro que a vida nos oferece. É o período de romantismo e pura festa da relação. Mas nós humanos, todos sabemos, não fomos feitos para viver de brigadeiros. Se insistíssemos terminaríamos gordos e anêmicos, o que não chega a ser um consolo. Além disso, como o brigadeiro fica reservado apenas ao início dos relacionamentos, teríamos que viver em uma eterna troca de parceiros.

          Nessa fase somos extremamente compreensivos e doces em relação às diferenças e mesmo aos defeitos – até os mais ou menos incômodos – do parceiro. É também um momento em que somos mais generosos e não hesitamos em renomear alguns, dando-lhes uma temporária camuflagem que os faz bem mais aceitáveis. Se a pessoa escolhida é excessivamente ciumenta e controladora dizemos que é apenas insegura; se é dada a grosserias dizemos que é uma pessoa verdadeira, sem hipocrisias; se exibe graves falhas intelectuais é renomeada como “autêntica”; um parceiro sem ambição e pouca tendência ao trabalho transforma-se em alguém que “não quer se submeter ao sistema”; se tem maus modos à mesa dizemos que é uma pessoa simples, contra esnobismos e assim por diante. Para esse esforço de renomeação, contamos com a parceria de uma das mais poderosas forças que operam sobre os humanos, uma espécie de chantilly que costuma recobrir tudo o que seria inaceitável no ser amado, uma força capaz de transformar sapos e sapas em príncipes e princesinhas, a famosa libido.

          Somente quando, aos poucos, esse chantilly libidinal for sendo sendo consumido, é que começaremos a vislumbrar, de fato, quem escolhemos para estar a nosso lado. Não que se vá descobrir alguém pior mas, na maioria das vezes, será ao menos bastante diferente do que imaginamos ter visto inicialmente.

          Freud diz, com propriedade, que a paixão é um surto psicótico temporário onde tomamos uma pessoa que nada tem de excepcional, começamos a inflacionar seus atributos e terminamos por transformá-la em alguém valiosíssimo, incomparável. Se pessoas a nosso redor, que enxergam essa maravilha sem o filtro da libido, tentam nos alertar para algum erro, tendemos a ignorar e até mesmo romper com o incauto. Nessa fase, inclusive, vários casais se isolam em seu paraíso particular e acabam se distanciando de seus laços de amizade, o que costuma causar grandes problemas quando a fase de idílio se dissolve.

          Como nos acreditamos amados por um ser precioso, passamos a nos sentir preciosos também e essa é uma sensação da qual temos muita dificuldade em abrir mão. Exatamente por isso, se em algum momento a relação termina, nos sentimos como quem perdeu grande parte do próprio valor.

          Mas porque isso acontece com todos, dos mais lógicos aos mais românticos dos seres, dos mais ingênuos aos mais experientes? Ocorre que o único plasma que move e direciona todos os seres vivos, não é a evolução, não é o sentido da vida, é a reprodução e apenas ela. A natureza condiciona absolutamente todos os seres vivos aos mecanismos de sua auto perpetuação e obedecemos cegamente a seu plano, não temos escolha. Esse plano, diga-se de passagem, lega a registros secundários todo o resto. Note que as plantas florescem em cores, para que não falhem os mecanismos de reprodução; os pássaros têm plumagens, cantos e até coreografias especiais para atrair seus parceiros sexuais; os odores se alteram com os feromônios para que os animais sejam irresistivelmente atraídos para o acasalamento na época fértil.

          Mas nós, os seres humanos perdemos o que chamamos de instintos. Não temos mais um instinto sexual propriamente dito, embora a atração sexual permaneça.  Com o correr da evolução o instinto se transformou no que chamamos de pulsão. Qual a diferença? O instinto tem uma forma única de se satisfazer. Assim, um leão que tem fome precisa de carne sangrando, seja lá de quem ou do que for. Nós humanos precisamos que ela seja preparada de forma a disfarçar de algum modo a morte em que implica, com cortes, cozimento e temperos. Se o leão precisa de sexo, quer uma leoa, pouco importando que seja sua avó, irmã, mãe ou filha. O mesmo para a leoa, irmão, pai ou filho são parceiros sexuais possíveis. Em suma, para os demais animais as interdições civilizatórias não existem. Onde elas intervêm, o instinto desaparece.

          Para que a civilização pudesse funcionar, vários mecanismos tiveram que ser distorcidos. Para um humano, a prática sexual além de ter leis determinadas que implicam em muitas proibições, passa também pelas distorções implantadas em cada indivíduo. Tanto que, para que um humano sinta-se atraído por outro, além de atender às proibições de parentesco, é preciso que tenha a idade, altura e formato determinados, somados a critérios ainda mais sutis. Essas exigências variam de acordo com as condições que atuam sobre o sujeito. Mas apenas algumas delas, as que dependem do momento histórico, dos fatores sócio-estético-culturais e do local onde ocorrem são conscientes, como veremos mais adiante. 

          Mas voltemos à fase inicial e a nosso casal apaixonado. Uma instância interna, que todos possuímos, alertada para o fato de que alguém nos atrai, vai trabalhar no sentido de consumar a reprodução. Mesmo que o casal seja composto por duas mulheres ou dois homens por exemplo, mesmo que se trate de um casal que já passou há muito da idade reprodutiva. É uma instância cega, que apenas reconhece a atração sexual como uma promessa de reprodução. Essa instância mobiliza a libido para evitar que ela seja desperdiçada e atua sobre nós amenizando tudo que seja desfavorável no parceiro, conforme já vimos. E é nessa fase, submersos nessa veladura temporária, que estamos mais predispostos a assumir compromissos mais duradouros.

          Concorre para isso mais um mecanismo a que chamamos projeção. Como não temos flores coloridas, coreografias nem períodos de cio, precisamos da fantasia para que a libido seja acionada. É um mecanismo essencial porque os animais pela simples proximidade detectam o cio e “cruzam”. Para nós é preciso que esse desejo passe por muitos filtros e critérios, a que chamamos de representações, que serão projetadas, isto é, atribuídas a quem nos atraiu. Frases como “Ele me pareceu tão carinhoso e cuidador”,  “Via-se logo que ela era independente”, “Senti que ele era o que eu precisava para não ter mais inseguranças”, “Já na primeira conversa eu soube que havia encontrado uma mulher ao mesmo tempo guerreira e protetora” mostram a fantasia inicial em plena construção. Esses pacientes estavam descrevendo o que projetaram no primeiro contato, ou seja, sem qualquer prova de realidade.

          Quando finalmente o casal decide morar no mesmo endereço, quando suas escovas de dentes passam a habitar o mesmo armário, lenta e consistentemente o outro vai se humanizando, vai sendo descolado da fantasia e se concretizando como um ser comum. As pequenas diferenças começam a ficar visíveis e incomodar. Se no princípio conseguimos recobrir o que incomoda com mil adjetivos de perfeição, nesse momento a tendência é ao desnudamento, retirando um a um os bons atributos por pequenas insignificâncias cotidianas. Aparece uma enorme indignação porque a toalha úmida é deixada sobre cama, porque a roupa não foi guardada, porque há cabelos no box do banheiro, o lixo não foi colocado para fora, a xícara não foi lavada e guardada imediatamente após o uso, a demora para se aprontar é excessiva, há vaidade de mais ou de menos, dá excessiva importância à família de origem, passa tempo demais  em redes sociais ou jogos online. Depois vem a forma como partilham os gastos, um reparando em tudo que o outro compra e achando-o mesquinho ou esbanjador, não importa muito. Tudo isso vai atuando como uma espécie de solvente para a fantasia e para a libido. Começa o período das culpas e acusações. 

          Chamo esse período de guerra dos scripts, onde cada um tenta impor seus usos e costumes como leis universais. É gestado desde o início, mas começa a ser perceptível por volta do terceiro ano de convívio intensivo. Com isso, aos poucos, o brigadeiro inicial vai se transformando, mudando lentamente de cor e formato, surgem as primeiras nuances de verde e, quando menos esperamos, transformou-se em uma grande alface. É a metáfora para um sexo satisfatório, mas já não mais explosivo, um sexo que requer boa vontade e tempero de ambos os parceiros e que, com o tempo, pode se tornar desinteressante e não raro penoso.

          Isso traz questões adicionais quando o desinteresse acontece de forma assimétrica, ou seja, começa para um muito antes que para o outro. Problema porque, na sociedade humana, quando alguém diz “não tenho vontade de fazer sexo hoje” é entendido pelo outro como “não te amo mais”, estou te rejeitando. Parece-me que existe ainda a ilusão de que o casamento vá garantir um parceiro que forneça satisfação sexual permanente e obrigatória. Para evitar esse tipo de incômodo um dos dois acaba concedendo sexo sem qualquer vontade o que pode mesmo levá-lo a uma repulsa real. Nessa fase, a depender do casal, podem começar inclusive ofensas, onde a mulher insinua que o parceiro é impotente ou ele a acusa de fria. Com essas patologias imaginárias tenta-se ocultar a realidade da relação.

          Não vou me aprofundar nessa parte, mas a chegada de um filho costuma ser um fator de aceleração nesse processo.

          Claro que tudo isso parece muito pesado e inaceitável, mas não é novo. Você perceberá com certeza que nenhum casal que está junto há mais de dez anos parece super erotizado e enamorado. Pouquíssimos louvam ainda as virtudes do casamento. Não raro fazem piadas sobre sua relação e um sobre o outro, quando não fazem reclamações escancaradas.

          É possível fazer diferente? Talvez, mas ainda não vi acontecer. A grande questão é que amor e libido não têm necessariamente uma relação de dependência. No início a corrente terna e a erótica estão reunidas pela fantasia que acionou a libido e isso produz o apaixonamento e o melhor período de prazer sexual. Cada um está apaixonado por sua própria projeção – a que depositou no outro – e o conjunto de traços específicos que possibilitam isso. Na medida em que a corrente erótica, a libido, o nosso necessário chantilly, se desgasta, surge o humano sem véus e refratário a projeções.

          No entanto, todo convívio e adaptação de hábitos, a companhia, a rotina, o costume, vão formar o berço do amor, que nada tem a ver com sexo. Porque podemos perfeitamente desejar alguém a que vemos na rua, na piscina, na tela de cinema, no filme pornográfico, sem ter a menor ideia de quem seja, ou seja, para o sexo o amor é totalmente dispensável.

          O fato é que, separadas as correntes terna e erótica nada mais as fará unir-se. O que fazer? As soluções são muitas e particulares de cada casal e cada indivíduo. Alguns casais aplicam-se a outras atividades onde usam sua libido. Sim, porque tudo que fazemos com prazer é feito com a mesma libido sexual, pintar, viajar, praticar esportes, frequentar festas, restaurantes, cinemas, investir em um hobby, praticar voluntariado. Alguns começam a ter “brigadeiros” ocasionais fora do casamento. Essa opção é bem utilizada por ambos os sexos, mas como as mulheres são mais discretas e cuidadosas apenas os homens levam a fama.

          O relacionamento aberto é uma opção que tem sido bastante adotada, mas exige que o casal tenha uma estrutura ética e psíquica especial. Há o aberto explícito, onde um comunica ao outro que vai sair com alguém e o tácito, onde fica permitido, mas os parceiros preferem não ser informados. Há casais que fazem uma lista de regras, como não permitir que se saia com amigos comuns, por exemplo.

          Isso não significa que o casamento é algo fadado a não dar certo, significa apenas que devemos reajustar o que esperamos dele àquilo que realmente pode nos oferecer. A sociedade nos promete algo que jamais entregou a ninguém: harmonia e desejo sexual permanentes. Embora nenhum casamento tenha dado a ninguém o que prometeu todos os que se dispõem a casar partem com a ideia de que, no caso deles, será diferente.

          Enquanto perdermos tempo e energia comparando o que esperávamos com o que o casamento pode oferecer realmente, vamos enfrentar decepção, frustração e às vezes até mesmo uma incontável troca de parceiros em busca do verdadeiro amor. O casamento já foi oferecido no passado com muito mais realismo, esse modelo que promete eterno amor é bastante recente. Recomendo o vídeo da historiadora Mary del Priore “O casamento entre o amor e o sexo”, facilmente encontrável no Youtube.

          Casamento, para quem quiser tentar, é um lugar de parceria, haja ou não filhos, um lugar de onde cada um dos parceiros deve estar disponível para dar suporte às angústias e necessidades do outro. Ninguém entra em uma relação decidido a transformar-se totalmente somente em função de atender ao que o outro deseja. Seria razoável que não esperasse um outro empenhado em atendê-lo em tudo, à custa do sacrifício do próprio desejo.

A infantolatria e a invenção do TDAH

Servindo a seus interesses comerciais a indústria farmacêutica tem criado e financiado várias pesquisas tendenciosas objetivando produzir provas da existência concreta do TDAH, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade. Tenta provar, além disso, que se trata de uma doença e que deve ser medicada com dimesilato de lisdexanfetamina, uma anfetamina.

O médico que criou o termo TDAH, Leon Eisenberg, foi um renomado psiquiatra infantil americano, com inúmeros livros e artigos publicados. Depois de aposentado tornou-se Professor de Medicina Social e psiquiatra Emérito (servindo ativamente – palestrando, pesquisando, escrevendo, e sendo mentor), no Department of Global Health and Social Medicine da Harvard Medical School na Longwood Medical Area de Boston.

Em fevereiro de 2012, a publicação alemã Der Spiegel (https://www.spiegel.de/) informou, em sua reportagem de capa, que Eisenberg em sua entrevista final, sete meses antes de sua morte, afirmou que o TDAH foi o primeiro exemplo de uma doença fabricada.  Eisenberg observou também que, em vez de prescrever uma “pílula”, os psiquiatras deveriam determinar se existem razões psicossociais que podem conduzir a esses problemas de comportamento. Em outras palavras, seria uma característica comportamental adquirida e não uma doença. Poderíamos dizer que é mais próxima de um sintoma produzido por uma causa.

A maioria das crianças tende à hiperatividade, mas tem uma capacitação, vinda de um condicionamento, para manter-se quieta em determinadas circunstâncias e usar sua energia em outras. Para quem sente desconforto diante do termo condicionamento, é bom lembrar que ele faz parte constante da humanização da cria humana, a começar pela educação dos esfíncteres, o treinamento para dormir em horários determinados,  a comunicação através da fala e vários outros para a alimentação e higiene.

Seria Leon Einsenberg, um intelectual tão sério e reconhecido, capaz de inventar uma doença? Não parece ter sido o que ocorreu. Ele indicou a existência de comportamentos problemáticos, que nomeou de TDAH, mas não os classificou como doença. Para fazermos um paralelo, a psicose é uma patologia que precisa ser medicada, enquanto o transtorno borderline é um problema de personalidade que não responde à medicação, embora a indústria farmacêutica e os psiquiatras em geral costumem medicar os chamados borders. Medicam para melhorar a vida dos familiares, porque seu comportamento é extremamente incômodo e inadequado. O medicamento rebaixa a agitação e a agressividade como um analgésico rebaixa a dor de cabeça. Incômodas e inadequadas são também as crianças sem nenhum limite, que não prestam atenção, não obedecem ordens nem param quietas durante os períodos de aulas.   

De fato, até a década de 60, pelo menos, jamais se ouviu falar sobre TDAH. As crianças viviam literalmente soltas, correndo pelas ruas, andando de bicicleta, pulando corda, subindo em árvores, gastando a energia, que têm sempre em excesso, da forma natural e saudável.  Na hora de fazer os deveres ou de estudar, eram obrigadas a isso pelos pais e pronto. Algumas se saiam melhor e outras pior, mas de algum modo entendiam que era preciso fazer o necessário. Se uma criança não se mostrava inclinada aos estudos, era encaminhada para um curso técnico ou um trabalho. Isso não constituía fracasso ou desastre, mas alternativa possível.

Na época anterior à pílula anticoncepcional, os casais acabavam tendo um número grande de filhos e precisavam sustentá-los e educá-los, além de manter um clima minimamente aceitável numa casa com cinco, oito, dez crianças com pouca diferença de idade. Isso fazia com que se fizessem respeitar, não havia outra alternativa. Os filhos obedeciam por medo de perder o amor dos pais ou de receber as consequências de seus atos.

Quando o sistema mudou do Capitalismo de Produção para o Capitalismo de Consumo, o número de filhos por casal foi sendo reduzido. Com o advento da pílula anticoncepcional e o ingresso das mulheres no mercado de trabalho isso se acentuou. Esses acontecimentos introduziram mudanças de comportamento na infância. Por um lado, o filho se transformou em uma espécie de produto narcísico que devia ser apresentado ao mundo como prova de sucesso. Por outro, sendo o foco dos maiores investimentos do casal, passou a ser em seu “maior tesouro”. Esse “maior tesouro” devia apresentar índices de seu valor obtendo sucesso em várias atividades. Ao lado disso não recebia regras ou limites porque os pais queriam a todo custo evitar que seu “maior tesouro” sofresse. Como estudar não é exatamente prazeroso e exigia disciplina as falhas começaram a surgir e, claro, precisaram ser corrigidas. Os pais começaram a terceirizar a educação para escolas, psicólogos, neurologistas e, quando surgiam problemas de solução mais complexa, psiquiatras. Houve primeiro uma grande onda de diagnósticos de dislexia. Rapidamente os pais preferiram o TDAH.

Esse tornou-se um nicho muito rentável e, ao longo dos anos, vários profissionais foram se especializando nele, grandes centros foram fundados, começou-se a ganhar muito dinheiro impulsionado pelos laboratórios. O TDAH fez com que, só no Brasil, fosse registrado o aumento de 775% no consumo de Ritalina em dez anos. Isso somado à vida de pais que trabalham e cada vez menos têm tempo para educar os filhos transformou a sigla TDAH na salvação da família e dos negócios. Em primeiro lugar os pais, culpados por ter pouco tempo e não dar suficiente atenção à prole, tornaram-se tolerantes em excesso, resultando em crianças com comportamentos inadequados. Acabam dando consequências de menos e premiações demais, o que dá aos filhos uma falsa visão da realidade do mundo. Em segundo, os espaços de vivência foram drasticamente reduzidos. As crianças passam os dias em escolas e, quando estão em casa, geralmente apartamentos, estão restritas a espaços onde não podem gastar toda sua energia. Quando se cria o TDAH eles ficam totalmente isentos de responsabilidade sobre a forma como os filhos se comportam porque toda a responsabilidade recai sobre a “doença”.

Os pais, que chegam cansados à noite de sua jornada diária no trabalho, passam a maior parte do tempo no celular, televisão ou computador, com pouquíssima vontade de aguentar ou educar os filhos. A elevação do filho ao status de “maior tesouro” origina uma espécie de infantolatria, onde a visão dos pais sobre os filhos é idealizada e nada crítica, o que só agrava o quadro geral.

O que organiza a criança internamente é saber o que é aceitável ou não em termos de comportamento. Os pais têm que deixar as regras claras e fazer com que sejam cumpridas, o que dá um enorme trabalho. Os pais podem achar engraçada a criança que se nega a obedecer, mas será que os professores vão aceitar? Podem achar necessário atender a criança ou adolescente em todas as suas exigências, mas será que o mundo, no futuro vai agir do mesmo modo? Esse é um problema fundamental. Quando a criança aprende desde cedo que não pode se comportar de forma inadequada nem pode obter tudo o que quiser, adquire uma ferramenta interna importantíssima: aprende a lidar com a frustração encontrando saídas criativas e não violentas. Adultos vivem melhor quando lidam com suas frustrações sem recorrer sistematicamente a drogas ou explosões de violência. Quanto mais cedo essa ferramenta for introduzida, mais fácil será implantá-la, porque crianças têm enorme maleabilidade psíquica. É das tarefas mais difíceis essa implantação em idades tardias.

Importante frisar que não basta criar um sujeito disciplinado, é preciso criar introduzir a criança em legalidades que a tornem também um sujeito ético. Empatia, solidariedade, honestidade, não são valores inatos, devem ser cuidadosamente implantados desde muito cedo.  

Quase tudo que fazemos habitualmente e nos parece simples, é resultado de um treinamento em áreas específicas do cérebro. O cérebro é uma enorme glândula que produz vários hormônios respondendo a estímulos enviados por pensamentos. Mas nem sempre um mesmo estímulo produz um tipo semelhante de sensação em dois indivíduos distintos. Tomemos um dia frio e chuvoso como exemplo. Há quem ache que é um dia aconchegante, delicioso para tomar um bom chá vendo um filme. Há quem ache que é um dia absolutamente deprimente. No entanto o fenômeno é o mesmo. O que mobiliza esses hormônios é aquilo que cada um se diz sobre a realidade. Um texto denso pode significar para alguém um desafio e para outro um obstáculo ou algo a ser evitado.

O sucesso em transpor etapas vai depender do treinamento de determinadas áreas do cérebro para aceitar deveres como algo cujo cumprimento gera satisfação e não desprazer absoluto. A impossibilidade de postergar o prazer, o imperativo de obtê-lo apenas de fontes que o forneçam de forma imediata, é uma potente matriz de insatisfação e irritabilidade. Quando a criança durante a infância é incumbida de pequenas tarefas, como arrumar a própria cama, manter seu quarto organizado, deixar o banheiro em ordem após o banho, desenvolve áreas que serão úteis no momento de enfrentar a vida tal como ela é, ou seja, onde esforços são usualmente necessários para que se consiga algo desejado. Estudar pode não ser prazeroso, mas o diploma pode propiciar um emprego com ganhos que permitam desfrutar de uma boa casa, viagens ou seja o que for que se valorize como objetos de felicidade. Tarefas desprazerosas temporárias são enfrentadas para obtenção de um prazer maior e mais duradouro.   

L.B., um de meus pacientes conseguiu formar-se em direito, colando e fazendo trabalhos em grupo, mas não conseguia obter nota na OAB para advogar. Fica todo o tempo em redes sociais e, quando não, gasta um tempo enorme imaginando a cobertura que comprará um dia, os carros maravilhosos e as viagens a Ibiza. Ou seja, fica totalmente siderado por tudo que possa lhe dar prazer imediato. Antes de iniciarmos nosso trabalho ele tomou Ritalina por longo tempo. Embora a medicação aja no sentido de aumentar a concentração,  não aumenta a capacidade de enfrentar o desprazer.

As áreas do cérebro, grosso modo, funcionam como a musculatura ou ossatura. Se uma criança é impedida de andar desde o nascimento até os 3 anos, por exemplo, poderá chegar a andar com fisioterapia e treinamento, mas não com a facilidade de uma criança que aprendeu a andar na idade apropriada. O mesmo acontece com o treinamento para aceitar a parte, digamos, desprazerosa do cotidiano e da vida como um todo.

Para os psiquiatras nada melhor do que o adestramento químico. Afinal, as principais características são a desatenção, a hiperatividade e a impulsividade. Mas note que essas crianças são desatentas apenas às aulas. Nos joguinhos, chats e outros entretenimentos fixam-se com maestria. A hiperatividade é a normalidade de qualquer criança e a impulsividade é total falta de senso de realidade, senso este que tem que vir de uma instrumentalização, bastante trabalhosa, a ser fornecida pelos pais, que vivem ocupadíssimos. Meu paciente L.B., adulto, não desviava a atenção nem perdia o foco se estivesse numa rede social ou planejando o roteiro de uma viagem complicada. Só não conseguia escrever ou revisar os processos que eram, segundo ele, extremamente chatos e aborrecidos.

Evidentemente há centenas de artigos tentando provar que Leon Eisenberg foi mal entendido em sua última entrevista. Afinal a indústria farmacêutica financia profissionais, principalmente na área da psicologia cognitivo-comportamental e os cursos de especialização em TDAH, bem como seus especialistas, proliferam às mil maravilhas.

A medicina comprou o discurso dos laboratórios e os médicos garantem que ele não acarreta problemas. Isso deixa os pais numa posição de desconforto e dúvida. Antes de decidir seria interessante lembrar que não existiam esses medicamentos de efeito final suspeito há 70, 60, 50 anos e as pessoas que atingiram essa idade conseguiram transpor as etapas esperadas e, em sua enorme maioria, concluíram seus estudos.

Cristina Mega

O Inferno e o Paraíso nos Mundos Ideais

(ou A Inviabilidade das Sociedades Igualitárias por uma ótica freudiana)

Em uma de minhas viagens enfrentei o contratempo de voar no sentido contrário ao que pretendia. Estando em Madri, tomei um avião até Zurique, para só então voltar a São Paulo. No momento em que o avião levantou voo, uma visão produziu em mim uma forte impressão de estranhamento. Aquela parte de Zurique, ao redor do aeroporto, pareceu-me pertencer a uma estranha cidade. Não havia os usuais muros ou divisões: apenas pequenas sebes, mais decorativas que demarcatórias, separando tenuemente as casas. Canteiros e calçadas formavam peças únicas, extensões de um imenso jardim. Eram habitantes destemidos ou não havia o que temer? Que tipo de laços estaria ali estabelecido? A primeira hipótese foi a de que as pessoas que ali viviam talvez contivessem em si muralhas tão grandes, fortes e poderosas, que as separações físicas seriam desnecessárias. Percebi mais tarde meu engano de perfeita desconhecedora: Zurique seria bem diferente daquele bairro que circunda o aeroporto, mas ainda assim uma das cidades com maior qualidade de vida do planeta.

Diante do estranhamento que determinadas formas de organizar espaços e relações podem provocar, veio-me um pensamento relativo ao eterno sonho humano de igualdade, que supõe a possibilidade de uma sociedade isenta de ameaças e baseada em relações de confiança. São itens compreensíveis, já que a ameaça e a desconfiança geram enorme insegurança e são fontes de desprazer nada apreciadas pelo ego. Talvez fosse possível relacionar esse sonho ao desejo de resgate daquele momento mítico e para sempre perdido onde nos fundíamos com a mãe. Não deve ser casual a semelhança existente entre o céu prometido, o paraíso perdido e os projetos de sociedades ideais. Mas não podemos negar o que dizia Schopenhauer sobre nossa capacidade de tentarmos nos livrar de um desprazer e acabarmos nos defrontando com outro:

A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem. Os homens exprimiram esta oscilação de modo curioso; depois de haverem feito do Inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram para o céu? Justamente o aborrecimento.

No paraíso o desejo perderá literalmente o poder de nos infernizar. Estaremos finalmente livres de nossos corpos e de nossa libido. Exatamente por isso esse mesmo paraíso não terá nenhuma angústia… nem nenhum atrativo. Então nós o adiamos para quando, purificados, pudermos finalmente compreender “qual é a graça” de mantermos a vida e a consciência em uma forma incorpórea e, digamos, “despulsionada”.

Freud, em O Mal-estar na Civilização, assinala que o plano de felicidade desejada pelo homem relaciona-se a, nada mais nada menos, que a vivência de intenso prazer e a eliminação do desprazer, sem possibilidade alguma ser executado; todas as normas do universo lhe são contrárias. Para tornar ainda piores essas perspectivas, Freud acrescenta que:

Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela acaba produzindo apenas um sentimento de contentamento muito tênue; só conseguimos obter prazer intenso através de um contraste e nunca de um determinado estado de coisas.

Trata-se de um dos paradoxos humanos: aquilo que hoje nos parece paraíso pode transformar-se no tédio de amanhã. Retomando Schopenhauer, observamos que aqueles que têm a rara sorte de ter um número muito grande de necessidades satisfeitas sem grande esforço e pouca razão para lutar e sofrer, mergulham, no mais das vezes, em crises onde a queixa é de que a vida já não tem sentido. Padecem, geralmente, de uma vaga e angustiante sensação de inutilidade. Em outras palavras, o paraíso, seja ele qual for, jamais será satisfatório. A satisfação que talvez trouxesse teria, quando muito, um prazo de validade determinado.

Concluiu que o homem tornou-se um “Deus de prótese”, e que as épocas futuras aumentariam a semelhança do homem com Deus sem que isso o tornasse mais feliz. O primeiro passo nessa direção foi dado no momento em que dominou a natureza, encontrando modos para enfrentar as intempéries e cultivar alimentos que eram encontrados apenas em determinadas épocas do ano; em seguida pelos avanços na química, biologia e medicina, ampliando as possibilidades da vida através de intervenções cirúrgicas, químicas e profiláticas. Isso nos traz uma esperança de obter o paraíso em vida. Doenças, pragas, fome, antes considerados castigos divinos, ficam minimizados. Ao mesmo tempo, teorias vindas da sociologia, da política e sabe-se lá de onde mais, procuram mostrar caminhos para que os conflitos da convivência fossem contornados e possamos implantar o amor e a harmonia, que desde a bíblia ficou inviabilizada – pela descoberta das diferenças intransponíveis – na fábula da construção da Torre de Babel.

“… a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. … Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural.” (FREUD, 1930 [1929] / 1996, pág. 49.)

O homem cristão vê em Deus um pai engrandecido, protetor, que realiza nossos desejos, e cuja ira se aplaca diante dos sinais de remorso, e espera encontrar no “próximo” e principalmente naqueles que encarnam a função de líderes, um incansável senso de justiça e bondade.

Qual o funcionamento de um paraíso e seus componentes básicos? Como funcionaria o amor, por exemplo? E a solidariedade, a harmonia, a amizade, como funcionariam dentro de uma sociedade igualitária para que esse funcionamento satisfizesse, não a todos, mas ao menos a um pequeno grupo de humanos? O que cada um permitiria e proibiria ao outro? E a si mesmo?

Nossas ilusões podem despencar em queda livre se acreditarmos na afirmação freudiana de que “Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar.” E note-se que ele limitou a apenas três as direções de onde nos pode vir a infelicidade. A primeira seria nosso corpo, que é vulnerável, adoece, envelhece e morre; a segunda seria o mundo externo com as tramas que nos cercam (política, economia, por exemplo) somadas à natureza –, que pode voltar-se contra nós e, finalmente, aquela que desde cedo é a mais clara, torturante e menos aceitável: “de nossos relacionamentos com outros homens”. Menos aceitável porque, para nosso azar, é essa a fonte de onde podemos e necessitamos obter maior prazer. É na gratificação proveniente de nossos relacionamentos que esperaríamos encontrar o céu, mas são eles, exatamente, nossa maior porta de entrada para o Inferno. O paraíso é o amor e “o Inferno são os outros”, como já bem dizia Sartre. De certo modo estamos condenados à uma certa forma de maldição: sem o outro não há como experimentar o paraíso e, com ele, não há como nos livrarmos do Inferno. Não podemos abrir mão de nossos vínculos tornando-nos autossuficientes porque, dessa forma, não conseguiríamos satisfação; não podemos ter satisfação porque não podemos controlar o outro a ponto de fazer com que atenda plenamente nossos desejos e anseios. Como não passamos de deuses incompletos, não temos como transformar o outro à imagem e semelhança de nosso próprio desejo e ideal e tampouco podemos amá-lo como a nós mesmos se essa transformação não se operar.

Apesar de tudo isso, a humanidade jamais deixou de sonhar com uma sociedade harmoniosa e sem desigualdades. Chegam diariamente a nosso Whatsapp, textos que nos falam de como devem portar-se os “verdadeiros amigos”, da vantagem da generosidade, do perdão, da aceitação das diferenças. Isso é o que esperamos do outro, mas e nós?  Mesmo em grupos com pequeno número de participantes, ligados por laços relativamente próximos e significativa possibilidade de identificação, as diferenças de opinião e visão provocam graves conflitos e a harmonia jamais é mantida por muito tempo. Cisões e rupturas em sociedades, partidos, associações, mostram-nos essa realidade diariamente. O próprio núcleo familiar é, constantemente, ninho de conflitos intensos e desgastantes. Porque então a persistência do sonho?

Retomando o pensamento de Freud, temos que admitir que grande parte do fracasso em implementar sociedades mais justas relaciona-se às dificuldades do ser humano em relação à renúncia e à solidariedade. Isso é importante para entender as razões pelas quais sociedades igualitárias jamais se estabeleceram de fato ou, quando se estabeleceram, terminaram em derrocada e porque grupos que produzem a mudança terminam assumindo posturas semelhantes às que combatiam no início.

Os fantásticos projetos de mundos idealizados podem ser alcançados por caminhos ricos e variados. Comecemos pela literatura. George Orwell em seu “1984”, onde cria a figura inesquecível do Grande Irmão, símbolo de toda a coerção e controle possíveis. Satiriza o paraíso como o domínio de um Estado onipresente, que se atribui o direito de alterar a história, o idioma, de oprimir e torturar o povo e de travar uma guerra sem fim com o objetivo de manter inabalada a estrutura de poder. Trata-se de uma metáfora sobre o poder e as sociedades modernas. George Orwell escreveu-o com certo sentido de urgência, para avisar a seus contemporâneos e às gerações futuras do perigo que corriam por perseguir modelos inviáveis de mundos ideais. Como um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda, terminou percebendo os caminhos pretendidos pelo stalinismo. Representa Stálin na figura do Grande Irmão e, ainda preso à fantasia interna de algum tipo de pai engrandecido, cria para ele um, arqui-inimigo, Goldstein, representando Trotsky. O mesmo Trotsky que, na história real, aniquila o campesinato que não consegue atender suas exigências.

Em outro livro, “A Revolução dos Bichos”, Orwell retrata de forma admirável o que acontece com todo grupo humano que toma o poder.  Dos Bolcheviques ao Partido Comunista da China, do partido de Fidel à esquerda tupiniquim, a história vai acrescentando dados de concordância à visão freudiana do humano. Um grupo de animais, revoltado com as condições em que vive sob o domínio dos humanos, resolve se rebelar, tomar o poder e estabelecer uma nova sociedade. Como seria de esperar, os líderes da rebelião defendem a igualdade e todos os mais elevados princípios e valores. No decorrer da transição, vão se tornando aos poucos idênticos aos humanos e criando para si privilégios injustificáveis enquanto exploram e humilham os que os ajudaram a ascender ao poder. “Todos os animais são iguais” (pág. 135), é seu slogan inicial. Ao final transforma-se em “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros” (pág. 135), paródia das justificativas capengas dos grupos que hoje ocupam o poder pelo mundo.

Passemos agora à História. Os modelos mais bem descritos e documentados são os que podemos obter dos projetos comunistas e socialistas de sociedade. Coloco-os logo em sequência às obras literárias que abordam o assunto porque não deixam, de certo modo, de partir de um projeto por vezes literário e utópico que tentará ser encenado no mundo concreto. No geral, o escritor puro e simples pode criar o paraíso e fazer-lhe a crítica, enquanto o teórico necessita de algum tipo de experiência empírica que venha a confirmar ou refutar sua hipótese. No campo social, que nada tem de científico, quando a prática não constata a hipótese parte-se para a busca de causas ou, mais frequentemente, de culpados. De qualquer maneira, uma das coisas que podem ser verificadas claramente quando analisamos as dificuldades que foram enfrentadas pela Rússia, é que o homem para o qual se construía aquele projeto, o sujeito, – ao menos aquele tal como é visto pela psicanálise – não foi levado em consideração. China e Cuba tentam ainda passar ao mundo a ideia de que vivem de fato numa sociedade de iguais. Mas a igualdade, se é que há, é mantida pela constante exclusão da diferença, pela eliminação da individualidade, ou seja, o massacre dos opositores, sustentado por uma cúpula que detém o direito de fazer aquilo que proíbe aos demais. No lugar de sujeitos, obrigatoriamente multifacetados, usou-se como sujeito-arquétipo desses projetos um homem idealizado que deseja a igualdade absoluta, ou seja, a indiferenciação.

Para que um desses projetos resultasse em uma nova forma de organização social, coisas bastante inviáveis se fariam necessárias. Primeiramente porque supõem que, tanto a fonte da desigualdade quanto de toda a insatisfação, venha principalmente da má distribuição de bens e riquezas. Poderíamos dizer que a desigualdade, nesse caso, refere-se ao social e que o poder, via de regra, está com quem detém a maior quantidade de bens. Esse raciocínio desvia do campo da pulsão sexual (que está, em alguma medida, atrelada à agressividade) para o campo das pulsões auto conservativas, todo o eixo da discórdia humana. A questão, conforme já apontamos e voltaremos a enfatizar, é que os “distribuidores” de bens e justiça jamais querem ter para si apenas o que dão aos demais.

Os projetos igualitários têm também, inicialmente, grande preocupação com a questão da distribuição do poder. Quase sempre planejam um certo rodízio preventivo, para impedir que uma pessoa ou um grupo fique por muito tempo no poder. O modelo preferido é aquele em que todos tenham a oportunidade de exercê-lo. Fica claro que é esperado que alguém que se mantenha por demasiado tempo no poder, que sinta seu gostinho inesquecível, pode vir a representar perigo. Isso porque o desejo de dominar e sobrepor a própria vontade à vontade dos demais é inerente ao humano e precisa ser regulamentada ou, para usar uma terminologia freudiana, é preciso que haja algum tipo de coerção para que seja mantida em níveis adequados. Isso fica bastante claro nos textos freudianos que tratam do narcisismo infantil e da onipotência. Evidentemente não se pode incluir nesse conjunto a totalidade dos humanos, mas os grupos ou indivíduos que aspiram ao poder dificilmente podem escapar dele. Quando falamos em grupo podemos pensar também em grupos menores, pequenas associações e na própria família, onde o jogo do poder sempre está claro e presente.

Ideal de eu: seu habitat

As próprias ideologias socialistas, ao tentarem se impor ao mundo, fizeram-no pela repressão, violência e extermínio de seus opositores, exatamente as atitudes que criticavam no grupo que se encontrava no poder à época de sua criação.

Recorro aqui a Zygmunt Bauman (2003 a) e sua noção de comunidade para penetrar por outro ângulo em algumas das questões abordadas por Freud em O Mal-estar na Civilização (1930 [1929] /1996), fundamentais para nossa reflexão. Podemos dizer que esses arquétipos idealizados não correspondem a possibilidades factíveis, mas servem, do mesmo modo que a distância entre o ideal de eu e o eu real, para que se estabeleça alguma mensuração e o nível das dificuldades para que essa distância seja – ou não – percorrida.

A comunidade, nos diz Zygmunt Bauman (2003 a), seria um lugar “cálido”, confortável e aconchegante.

“É um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo nos espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui na comunidade podemos relaxar – estamos seguros, não há perigos em cantos escuros. … Numa comunidade todos nos entendemos muito bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou surpreendidos. Podemos discutir, mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos melhor e mais agradável do que até aqui… “(BAUMAN, 2003 a, pg.07)

A simples descrição desse ambiente relaxante, para nós, que vivemos as agruras do dia-a-dia, promove uma sensação de intenso bem-estar interno.  Essa descrição evoca quase tudo aquilo de que sentimos falta. Segundo a teoria freudiana, ao nos darmos conta da impossibilidade da manutenção do eu ideal temos a necessidade de substituí-lo por um paliativo. A castração, como sabemos, é o elemento doloroso e fundamental do complexo de Édipo. Através dela a criança abandona a posição do eu ideal, onde se encontra de posse de toda a perfeição necessária para ser um objeto completo para a mãe, trocando-a, de boa ou má vontade, pelo ideal de eu. Mas o sujeito jamais se consola por essa perda e procura, por caminhos substitutivos, a retomada do que foi perdido.

Sabemos que as pulsões sofrem a vicissitude da repressão quando entram em conflito com os valores éticos e morais do indivíduo. Poderíamos dizer que o sujeito renuncia ao pulsional pelo amor do outro – já que é na relação com o outro que se constitui – e seria essa uma das principais fontes de conflito. Constrói-se aí o amor ao outro que é, se levarmos em conta o narcisismo, uma espécie de amor por si mesmo, na medida em que percebemos, logo cedo, essa dependência. A renúncia não é opcional, pois tratamos aqui do animal humano, a quem coube a característica de representar, de pensar sobre si e sobre seus próprios pensamentos. São as ideias, constitutivas do ego, que lhe fariam exigências e produziriam a repressão, egóica, portanto. Significa que o indivíduo fixou um ideal para si próprio e seria esse o fator relevante para que a repressão fosse instaurada. Esse modelo, a que chama ideal de eu, torna-se alvo do amor a si próprio e desloca, agora em sua própria direção, o narcisismo infantil, remodelado. É através dele que o indivíduo partirá em busca da restauração do ego infantil já que, na infância, o ego revestia-se de uma perfeição que o indivíduo reluta em entender que jamais voltará a ter. Entra aí o ideal de eu, que pode ser considerado mais ou menos como um projeto de recuperação. Seu ideal projetado surge com o encargo de substituir a perfeição do narcisismo perdido na infância, onde ele próprio era seu ideal. Esse ideal perdido refere-se já à relação com o outro, na medida em que é o casal parental, com seu olhar de deslumbramento, que produz a sensação de perfeição inicial.

Impulsionados pelo ideal de eu tentamos desenvolver e manter valores elevados que fazem a diferença entre a convivência animal pura e simples e aquela que entendemos como convivência humana. Caso não houvesse a castração, ou fosse mantido o eu ideal não haveria possibilidade de sociedade e cultura.

Desde a “Introdução ao Narcisismo” (FREUD, 1914/1996) percebemos o estabelecimento de uma diferença entre sublimação e idealização, que não se altera muito ao longo da obra. É a delimitação que estabelece nesse texto entre o eu ideal e o ideal de eu, que nos permite compreender o conceito de idealização. Apóia-se para isso no conceito de repressão: “A repressão, já dissemos, parte do eu. Poderíamos precisar: do respeito do eu por si mesmo (Selbstachtung)”. (FREUD, 1914/1996, pág. 90).

A comparação que vai se estabelecer entre o ideal de eu e o eu real, visa satisfazer o narcisismo de algum modo e constitui uma espécie de instância interior de regulação capaz de determinar a autoestima que, por sua vez, depende da libido narcisista.

A distinção entre ideal de eu e superego, presente em alguns trabalhos de Freud foi retomada e valorizada por Lacan. Menciona explicitamente – como uma importante consequência dessa distinção – que o superego não pode ser identificado à consciência moral. Freud propõe inicialmente duas funções diferenciadas do superego: a auto-observação, como uma atividade preliminar necessária ao julgamento, e o julgamento moral propriamente dito. A seguir acrescenta ainda uma terceira função do superego: a de ser o veículo do ideal de eu, ao qual o eu se compara.

Freud descreve a sublimação como “um processo que diz respeito à libido e consiste no fato de a pulsão se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse processo, a tônica recai na deflexão da sexualidade” (FREUD, 1914/1996, pág. 101 corrigido) enquanto a idealização é descrita como “um processo que diz respeito ao objeto; por ela, esse objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, é engrandecido e exaltado na mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido do ego quanto na da libido objetal. Por exemplo, a supervalorização sexual de um objeto é uma idealização do mesmo” (FREUD, 1914/1996, pág.101 ).

Tendo em vista todos esses pontos podemos supor que, para que o ideal de eu possa se manter e desenvolver, é necessário, digamos assim, um contexto correlato, como uma espécie de universo paralelo à realidade subjetivamente percebida. Podemos imaginar que, da mesma forma que o ego, esse universo também se desenvolva na trama das relações com os objetos ou que tem contato e informações provenientes do mundo exterior (educação, cultura, ciência, arte, moral, ética). As escolhas serão feitas no sentido de que apenas aquilo que preenche requisitos de certa perfeição pode integrar um ideal. Esse seria o habitat adequado ao ideal de eu e vamos chama-lo de ideal de mundo que, para estar completo, deve ser povoado e habitado por ideais de outro. Descrito desse modo pode parecer bizarro e disparatado esse pretenso mundo, mas creio que, sem ele, não nos seria possível prosseguir em direção a algo, investindo libido.

A arte renascentista, com suas paisagens e corpos perfeitos, com seus ideais platônicos, é um bom exemplo da tentativa de construção de um desses sonhados mundos. Poderíamos tomar ainda os mais variados arquétipos – tanto do bem quanto do mal absoluto – para ilustrar essa ideia, que estão amplamente distribuídos pela literatura, ciência e política. Maquiavel (2012), considerado o fundador da ciência política, é um bom exemplo do ideal invertido. Enfoca a natureza humana em todo seu esplendor e mesquinhez, despreza a visão “amaciadora” propiciada pelos ideais de eu e ideais de outro, e se atém ao humano tal e qual é, tal e qual age em relação aos semelhantes quando tem alguma forma de usar a força a seu favor. Toma o humano tal como podemos vê-lo através da história da humanidade em sua incessante luta pelo poder. O desconforto que gera a visão de Maquiavel (2012) é equiparável ao que produz a criança do conto de fadas ao gritar “O rei está nu!”. Faz com que nos sintamos nus com todo o despudor que exibiríamos se nos despíssemos de nossos ideais de eu.

Maquiavel (2012) trabalha o desejo cru, preocupado apenas em criar instruções minuciosas, didáticas e realistas para um príncipe, também humano e real, para que atinja seus objetivos de conquista. Estamos acostumados a discursos onde toda ação de conquista e domínio vem enfeitada pelos brilhantes das intenções mais elevadas. Acabamos acreditando que existe uma crueldade justa! Não é esse, de fato, o caminho de Maquiavel (2012, s/p.), quando discorre sobre crueldades bem e mal usadas:

Poderia alguém ficar em dúvida sobre a razão por que Agátocles e algum outro a ele semelhante, após tantas traições e crueldades, puderam viver longamente, sem perigo, dentro de sua pátria e, ainda, defender-se dos inimigos externos sem que os seus concidadãos contra eles tivessem conspirado, tanto mais notando-se que muitos outros não conseguiram manter o Estado, mediante a crueldade, nos tempos pacíficos e, muito menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que isto resulte das crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se dizer serem aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem instantaneamente pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não se insiste, mas sim se as transforma no máximo possível de utilidade para os súditos; mal usadas são aquelas que, mesmo poucas a princípio, com o decorrer do tempo aumentam ao invés de se extinguirem. Aqueles que observam o primeiro modo de agir, podem remediar sua situação com apoio de Deus e dos homens, como ocorreu com Agátocles; aos outros torna-se impossível a continuidade no poder.

Por isso é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios. Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança diante das novas e contínuas injúrias. Portanto, as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam melhor apreciados.

Teríamos uma razoável dificuldade em confiar ou mesmo aceitar a proteção de alguém que se baseasse nesses princípios. Desejamos alguém que, vestido de grande pai, diga-nos que se sacrifica ao assumir o poder para proteger os interesses da coletividade. A crueldade, caso apareça, deve ser razão para que esse líder se entristeça. Mais que isso, espera-se que ele possa justificá-la como inevitável.

Contrapomos constantemente nosso ideal de mundo ao mundo real e nos damos conta do quanto falta para alcançarmos a felicidade. Somos obrigados assim a considerar que, além do ideal de eu, temos também um ideal de outro, um ideal de comunidade e muitos outros modelos ideais. Retornando Bauman (2003 a, p.09), “é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance – mas no qual gostaríamos de viver e que todos esperamos vir a possuir”. Quando constatamos que o ideal de mundo não corresponde ao mundo real, não pensamos em desistir dele.  Acreditamos sempre que ainda não o temos por responsabilidade de um outro, quer seja ele o líder falho, o parceiro egoísta, o pai incompreensivo, que nos priva do paraíso por não corresponder ao ideal.

Isso nos leva ao nosso próximo problema: a diferença existente entre as concepções subjetivas, ou seja, entre a comunidade de nossos sonhos, a comunidade do sonho dos outros e a comunidade realmente possível. Esta última nos interessa porque se configura a partir de nossas experiências reais de comunidade.

Suponhamos que tivéssemos a nosso alcance a comunidade sonhada. Manter sua harmonia exigiria dos participantes e de nós mesmos, uma rigorosa obediência a certas normas. Para nos adequarmos aos conceitos de confiabilidade exigidos pelo grupo isso deveríamos abrir mão de boa parcela de nossa liberdade. Caso nós mesmos houvéssemos criado a comunidade e suas regras, exigiríamos subordinação semelhante dos ingressantes. Qualquer que seja a escolha ganhamos uma coisa e perdemos outra. A comunidade ideal de um dado sujeito seria aquela em que pudesse concordar com todas as regras sem estar perdendo nada de relevante, ou seja, aquela que se baseasse em sua própria vontade. Como não há duas concepções idênticas de mundo ou de regras aceitáveis, essa comunidade seria baseada no ideal de eu e povoada por ideais de outro, o que é, no mínimo, improvável. Assim, ou perdemos nossa própria liberdade – enquanto integrantes comuns – ou cerceamos a liberdade dos que se opuserem à nossa vontade – enquanto líderes.

Segurança e liberdade são dois valores preciosos e desejados, mas não se encontrou formas ainda de ajustar ambos sem conflito, diz Bauman (2003 a). Nossos desejos mais caros são infantis e narcísicos. Desejamos nos sobrepormos e sobressair em relação aos demais, deter sempre a palavra final e receber aprovação incondicionalmente. Talvez por isso mesmo a história acumule enorme número de fatos concretos que, por si, poderiam levar à descrença nas sociedades igualitárias e em qualquer projeto de harmonia perfeita. Podemos pensar, tal como Freud aponta em “O Futuro de uma Ilusão” (1927/1996, pág.16) que “Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção.

O próprio Freud, no mesmo texto, observa que seria necessário um reordenamento das relações humanas que removesse as fontes de insatisfação para com a civilização., principalmente as da renúncia, da coerção e repressão pulsional. Talvez assim, livres da discórdia interna, os homens pudessem usufruir dos benefícios do conforto que a civilização proporciona. Mas é exatamente sobre a renúncia e repressão pulsional que se ergue toda a civilização, já que o homem traz em si, em maior ou menor dose, tendências destrutivas e antissociais que podem determinar seu comportamento nas sociedades humanas e mesmo ameaçá-las.

Seria importante, neste ponto, diferenciar ao que nos referimos ao falar sobre as tendências destrutivas atreladas ao sexual. Afinal, é a sublimação da pulsão sexual que leva à melhor produção da cultura, como a arte e a ciência, o que significa que a destrutividade não é o único caminho. Exatamente por não conseguir admitir que, por sua própria natureza cheia de agressividade, por suas dificuldades em renunciar a algo pelo bem de todos (coisa que não faz, mas exige dos demais) é o próprio homem o empecilho a uma convivência harmoniosa.  Por isso mesmo recobre-se, com um poderoso ideal de eu. Se desistisse de seus ideais de mundo o homem abriria mão daquela parte de si que lhe torna possível aceitar, ainda que de má vontade e à custa de alguma neurose, as interdições necessárias à manutenção da cultura.

Os planejamentos teóricos das sociedades igualitárias partem do princípio que todo o mal reside na distribuição desigual de riquezas. É como se o bem-estar material fornecesse motivação suficiente para compensar o que se perde na renúncia à satisfação pulsional. Mas a distribuição não é igualitária porque a natureza humana não é, por si, generosa. Não é por acaso que o caminho natural levou a humanidade do feudalismo – sistema baseado em absoluta desigualdade e exploração – e posteriormente ao capitalismo, onde cada um busca, a seu modo, adquirir, conservar e multiplicar bens para si próprio e seus descendentes.

Outra questão que tange às diferenças é que nenhuma sociedade pode se constituir sem alguma espécie de líder ou de ordenação. Há sempre alguém ou um grupo coordenando a produção e distribuição de alimentos ou tentando evitar que se estabeleça uma destrutividade desenfreada. Freud aponta que o ser humano não é naturalmente amante do trabalho e que nenhuma argumentação consegue refrear as paixões. Justifica por isso certo grau de coerção para que a sociedade possa manter-se. Admitindo que o anarquismo não seja um tipo de projeto viável resta ainda responder à pergunta crucial: onde obter, se é que existem, líderes de uma tal natureza que seu exemplo – em aceitar e impor a si mesmo a limitação pedida pela civilização – possa guiar os demais?

Algo que merece uma reflexão quando pensamos porque as sociedades que se propuseram ao socialismo fracassaram, é o fato de que não levaram em conta o sujeito humano que constituiria sua matéria prima essencial. Não seria possível, por outro lado, pensar em uma sociedade com ausência total de dominação, porque isso nos faria novamente voltar à indiferenciação. De um ponto de vista freudiano essa diferenciação, que resulta em naturezas com diferentes inclinações, começa a operar desde o primeiro contato com o mundo. Assim, não seria possível pensar operacionalmente em sujeitos com desejos idênticos e idênticas formas de manifestá-los.

As dificuldades à renúncia

Frustração é o que resulta quando não é possível que uma pulsão seja satisfeita, enquanto a proibição seria a regra que estabelece essa frustração. O resultado final seria a privação. É evidente que as privações não afetam a todos da mesma forma. Os desejos pulsionais mais fundamentais, que foram alvo das mais antigas proibições, separando o homem de sua condição animal inicial – o canibalismo, o incesto e a ânsia de matar – recebem tratamento semelhante nas sociedades de que se tem notícia. Excetuando-se o canibalismo, chama a atenção que os outros dois sigam vigentes pelo número de proibições ainda existentes para desestimulá-los. Mas a condição exclusiva do homem socializado permite que uma coerção interna passe a atuar a partir de dentro, através do superego. Se pudéssemos medir coisas imensuráveis seria possível pensarmos nas diferentes dimensões dos superegos de cada sujeito individualmente. Acabaríamos notando uma gama provavelmente extensa de adesões maiores, menores e mesmo nulas às regras impostas à satisfação pulsional. De qualquer modo é apenas através da formação do superego que uma criança termina por transformar-se em alguém apto a viver em civilização, realizando suas regras éticas, estéticas, morais e sociais.

Os graus de privação a que se veem submetidos determinados grupos também determinam, de certa forma, sua atuação. O sujeito que, como na China de Mao, começava a ser indiferenciado pela própria roupa, precisava logo de início abrir mão de parte de sua identidade. Era obrigado a adotar a convicção de que, para pertencer a essa comunidade ideal, deveria desistir do que Nietzsche (1887/2011) chamava de vontade de potência e que em Freud podemos chamar de desejo. Se a prevalência do narcisismo não parece uma boa ideia para um grupo submetido a um tirano, a total ausência de possibilidades de diferenciar-se parece igualmente sem atrativos. Cessam os estímulos, a criatividade, as possibilidades mesmas de sublimação. É o céu aborrecido de que nos fala Schopenhauer (ano da 1ª edição/2012, s/pág): se a serenidade da pura contemplação pode representar a ausência de angústia, indica igualmente a inexistência de qualquer prazer.

Conclusão

O pensamento do tronco judaico-cristão, no qual estamos situados, prega uma postura de que os bons devem ser fracos, impotentes, pobres de espírito. O orgulho de si, a potência, a insubordinação à submissão, o desejo de crescimento, aproximam-se do mal. O mal é aquele que luta, reivindica, constrói, realiza, ou seja, é aquele que deseja. Isso nos prende quase fatalmente a uma moral do ressentimento. Devemos sofrer aqui e aguardar pela compensação, que é também a vingança que nos foi prometida. Deus nos prometeu que, sofrendo sem revolta, herdaríamos o céu. E o pior é que nem sequer poderemos aproveitar, já que só podemos apreciar aquilo que possuímos ou sentimos em oposição à falta ou ao excesso. Não se pode gozar férias sem trabalho nem o prato requintado sem fome.

Pensar que se esteja de fato concluindo qualquer coisa sobre uma questão que engloba tão grande número de variáveis seria pura temeridade. Afinal, as visões de Inferno e paraíso se sobrepõem, dentro e fora de nós, repetindo o conflito entre as exigências pulsionais e as normas da cultura, entre criatividade e destrutividade, entre Eros e Thanatos.

 Parece-me absurdo que boa parte da humanidade ainda se divida entre duas possibilidades quase exclusivas – capitalismo e socialismo – como se somente assim pudéssemos opor o mal ao bem em territórios delimitados. O capitalismo, por ser injusto e promovedor de miséria, o socialismo por trazer, não na teoria, mas na prática, as sementes da mesma desigualdade, não parecem defensáveis. Mas os defensores de cada um consomem todas as suas energias em críticas ao lado oposto e não conseguem pensar, por exemplo, num terceiro caminho, que talvez representasse uma saída mais promissora.

Não há como pensar uma saída sem pensar nos sujeitos que integrarão cada sociedade. Não se pode desprezar o fato de que a humanidade não é composta por sujeitos inocentes e humildes, despidos de desejo à espera de um olhar magnânimo e paternal. Pensar um novo caminho significa pensar o esse sujeito individual que, na clínica, é analisando ou analista, no mundo, cidadão, em suas limitações e suas possibilidades. Maquiavel (1513/2012), quando toma o homem visto sem o filtro dos ideais, traz à tona a realidade do narcisismo e do egoísmo com os quais temos que nos defrontar, não como patológicos, mas como dados a serem seriamente considerados. Trata das questões que realmente norteiam aqueles que buscam o poder, mostrando que o próprio desejo de comandar oculta intenções muito diferentes do paternalismo e o desejo de promover o bem-estar da comunidade. Alerta também para o fato de que o aspirante ao poder precisa revestir seu discurso, de algum modo, com a bondade e a sabedoria porque os dominados esperam que sejam sua verdadeira motivação. É preciso assinalar que ele, ao contrário de Freud e outros pensadores, vê nisso a natureza imutável do humano e não propriamente um problema. Para analisar sua posição entraríamos no campo da ética e da moral, que nos parece bastante escorregadio, correndo o risco de dar à reflexão um tom maniqueísta em tempos onde o bem e o mal precisam ser profundamente questionados.

A ciência, um dos elementos que fortaleceria o Deus de prótese de que fala Freud, veio apenas em benefício de alguns. Apenas uma pequena e privilegiada elite tem acesso aos processos de cura mais avançados, à tecnologia e ao bem-estar que ela pode oferecer. Por outro lado, a própria ciência contribui para a criação de mercadorias que, em última instância, pelo número de recursos naturais que solicita, encaminha o planeta ao sucateamento. O homem só consegue pensar a curto prazo, ou seja, no seu prazo de permanência sobre a Terra, e não consegue se preocupar com os que virão no futuro e terão que arcar com as consequências de seus atos.

O que se pode constatar, portanto, é que tanto no capitalismo quanto em outros sistemas o que prevalece é o privilégio de poucos em detrimento da liberdade e da satisfação das necessidades dos demais. O grupo que atinge o poder, de uma forma ou de outra, sempre achará justificada essa escandalosa diferença. A satisfação das necessidades essenciais é, certamente, um dos pontos a se pensar para que haja condições dignas de vida, mas isso está longe de ser o suficiente, já que certo narcisismo, certa agressividade e o próprio desejo pedem espaço. A coerção, do mesmo modo, jamais deixará de ser necessária, desde que não aniquile as diferenças.

O ideal de eu, o ideal de mundo e o ideal de outro, formam uma configuração que dificulta a visualização de caminhos viáveis para novas formas de convivência entre indivíduos. Paradoxalmente, sem eles, não poderíamos dizer que o novo caminho traria algum acréscimo às construções que conduzem à solidariedade e à renúncia.

Lembro-me de um documentário que falava sobre o quanto, ainda hoje, despendem-se recursos em suntuosas festas a fantasia e, de uma delas em particular, em que se acompanhavam os convidados desde a sua entrada. Impressionou-me uma linda mulher, que ao entrar capturou todos os olhares. Parecia a materialização das mais belas visões da arte sobre a feminilidade. Vestia com um rico traje bordado e sustentava por uma haste, sobre o rosto, uma belíssima máscara veneziana que lhe dava tantos rostos quantos se pudesse sonhar, todos perfeitos. Deslizava prendendo os olhares e agradecendo os cumprimentos com a graça de uma ninfa. Ao aproximar-se da anfitriã, no entanto, foi preciso que baixasse a máscara. Desfez-se o encanto, quebrou-se abruptamente a magia. Tratava-se de uma mulher já madura e muito distante dos padrões de beleza cultuados. Os olhares imediatamente criaram uma turbulência que sinalizava a quebra do fascínio e subitamente seus ombros baixaram, curvou-se o torso, endureceram-se os gestos. O andar tornou-se rígido e titubeante.

Como a máscara de beleza absoluta, nosso ideal de eu nos faz sentir dignos da perfeição a que aspiramos. Leva-nos ao menos a acreditar que, por algum artifício ou sacrifício pessoal atingiremos, um dia, aquilo que imaginamos ou desejamos ser. Desejamos, na verdade, ser ao menos um pálido reflexo do que fomos naquele breve e mágico período onde um olhar deslumbrado nos conferia completude e majestade. O que aspiramos como signo de perfeição equivale também ao que gostaríamos de ver no outro idealizado – a mãe primeva, para sempre perdida – que povoaria o ideal de mundo onde, finalmente, encontraríamos a felicidade e exorcizaríamos o monstro ancestral do desamparo. É a promessa do paraíso cristão: os maus serão eliminados e punidos enquanto os bons, triunfantes, habitarão acompanhados de seus pares a monotonia paradisíaca.

Apesar da máscara como metáfora, a busca de uma melhor solução para a equação sujeito-cultura nada tem a ver com “desmascarar” o humano. Sem a possibilidade de alimentar ideais deixaríamos de buscar de soluções mais adequadas e humanas. Claro que a ideia de perfeição será sempre ilusória, por tratar-se de enfoque individual, dependente de fatores variados e, como tudo aquilo que é humano, não coincidir quando analisada de sujeito a sujeito. Podemos dizer que, tal como existem “narcisismos”, existem “perfeições” e seu formato é moldado no percurso de cada sujeito. É preciso que o ideal de mundo permaneça para que nos aventuremos a tentar fazer mudanças, com toda delícia e a imensa dor que isso implica.

Freud reconhece que, devido à diferenciada e complicada situação do humano, principalmente diante de seu desamparo, a ciência de um modo geral e a psicanálise em particular nada podem oferecer que se equipare ao que é oferecido pelas religiões e, poderíamos acrescentar, pelos mundos idealizados.

Entre as diversas tentativas de construção de mundos ideais, há também aqueles que pregam uma espécie de retorno à natureza. Mas o homem só existe enquanto tal dentro da cultura e o mal-estar é o preço pago para que viva nela, reprimindo a agressividade e a sexualidade. A cultura é a convivência baseada em determinado grau de repressão, onde se renuncia à satisfação pulsional desenfreada pela própria sobrevivência e pelo amor do outro. Essa é, aliás, uma frase redundante, porque na relação com o outro reside nossa única chance de sobrevivência. Podemos dizer, portanto que a existência humana nada tem de “natural”, estritamente falando, e que esse mal-estar jamais será eliminado, seja qual for o rumo que tomem as organizações sociais. A agressividade, como bem aponta Freud, não foi criada pela propriedade.

 Quando Freud nos fala das “disposições pulsionais variadas” somos levados a pensar nos imprevisíveis meandros que constituem os percursos individuais do nascimento à morte. São infinitas as possibilidades de arranjos entre as potencialidades que trazemos em um corpo biológico e a sucessão de eventos que o transformarão em corpo erógeno. Arranjo é termo mais adequado que combinação porque até mesmo a ordem temporal em que ocorrem atua como variável, dado que o ego é construído na relação com o outro ao longo do percurso. São esses meandros e arranjos únicos que constituirão os sujeitos igualmente únicos pensados pela teoria psicanalítica.

Mudar não significa abandonar a máscara segundo a qual pretendemos ou temos o desejo de nos modelar, essa que incorpora todos os valores que nos são mais caros, mas tomar consciência da distância entre a máscara e a face verdadeira. Esse grapho, trama escultórica de associações particulares e únicas, determinará se estão mais próximas da argila ou do granito, as dificuldades com que se vai confrontar nessa transição.

REFERÊNCIAS

AMBERTÍN, M. G. A Questão do Sujeito e as Identificações. Recuperado em 28 de maio de 2012. Disponível em: http://www.psi.puc- rio.br revista161_Marta_Gerez_Ambertin.html

AMBERTÍN, M. G. Imperativos do Superego: Testemunhos Clínicos. São Paulo: Editora Escuta, 2006, 302 p.

BAUMAN, Z. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, 192 p.BAUMAN, Z. Comunidade: a Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003a, 144 p.BAUMAN, Z. O Mal-estar na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003b, 276 p.

BIRMAN, J. Desamparo, horror e sublimação. In Estilo e Modernidade em Psicanálise, São Paulo: Editora 34, 1997, 233 p.

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras (Psicológicas?) Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1996.(1914). Sobre o Narcisismo: uma Introdução, v.14.

(1927). O futuro de uma ilusão, v.21.

(1930 [1929]). O mal-estar na civilização, v.21.

(1933 [1932]). Conferência XXXI: A dissecação da Personalidade psíquica, v.22.

(1939 [1934-38]). Moisés e o Monoteísmo, v.23.

KEHL, M. R. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, 204 p.

MAQUIAVEL, N. O Príncipe (1513) Recuperado em 28 de maio de 2012. Disponível em:

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000052.pdf  

MEZAN, R. Freud, Pensador da Cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, 760 p.

NIETZSCHE, F. Vontade de Potência (1887). São Paulo: Vozes, 2011, 548 p.

ORWELL, G. O Grande Irmão. In: 1984 (1949). Recuperado em 20/02/2013. Disponível em: http://www.4shared.com/office/O3SPITcy/1984_-_George_Orwell.htm

ORWELL, G. A Revolução dos Bichos. (1945). Recuperado em 20 de fevereiro de 2013. Disponível em: http://www.4shared.com/office/r5rlOqc0/george_orwell_-_a_revoluo_dos_.html

SARTRE, J-P. Entre Quatro Paredes. (1945). Recuperado em 19 de janeiro de 2013. Disponível em: http://e-livro.clube-de-leituras.pt/upload/e_livros/clle000073.pdf

SCHOPENHAUER, A. A Vontade de Amar -São Paulo, Edimax, ano não consta no livro, 134p)

SILVA Jr., N. Estudo das marcas corporais na modernidade: sustentar a causa do sujeito.

Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Recuperado em 28 de maio de 2012. Disponível em: http://www.fundamentalpsychopathology.org

Cristina Mega

 

Nosso implacável narcisismo

Cuando Narciso murió, el río de sus delicias se transformó de una copa de agua dulce en una copa de lágrimas saladas, y las Oreades vinieron llorando por los bosques a cantar junto al río y a consolarle.
Y cuando vieron que el río habíase convertido de copa de agua dulce en copa de lágrimas saladas, deshicieron los bucles verdes de sus cabelleras. Y gritaban al río, y le decían:
-No nos extraña que le llores así. ¿Cómo no ibas a amar a Narciso, con lo bello que era?
-Pero ¿Narciso era bello?
-¿Quién mejor que tú puede saberlo? –respondieron las Oreades. – Nos despreciaba a nosotras, pero te cortejaba a ti, e inclinado sobre tus orillas, dejaba reposar sus ojos sobre ti, y contemplaba su belleza en el espejo de tus aguas.
Y el río contestó:
-Si amaba yo a Narciso era porque, cuando se inclinaba en mis orillas dejaba reposar sus ojos sobre mí. En el espejo de sus ojos veía reflejada mi propia belleza.
(Oscar Wilde, O discípulo)

Narciso e o narcisismo podem refletir, ao menos para o entender psicanalítico, tanto quanto o espelho, embora o que possamos ver aí refletido não tenha a perfeição geométrica da imagem, mas a imprecisão do que é humano. Talvez porque o espelho seja, ele também, narcisista, o conceito de narcisismo mostra-se, quantos mais sejam os autores que se consulte, de tal maneira multifacetado e abrangente que suscita questionamentos acerca das modalidades que abrange e não comporta qualquer tipo de aplainamento. Nas buscas através de leituras que embasem torna-se claro que a ramificação em nuances conceituais se adequa melhor ao termo do que à singularidade absoluta.

Podemos identificar na teoria freudiana um ponto de vista onde as atividades de autoconservação, com suas implicações na realidade, constituem a base pulsional do eu na satisfação autoerótica, e delineamentos mais acentuados do conceito em textos como o da análise empreendida por Freud do caso Schreber, onde encontramos a definição de narcisismo como uma etapa no desenvolvimento da constituição do eu. Em Uma introdução ao Narcisismo, Freud retoma a questão da gênese do eu que, a partir do autoerotismo e da parcialidade da pulsão, fica sujeita ao investimento da libido. Freud parte da hipótese de que os primórdios da sexualidade infantil estariam vinculados a um mecanismo de apoio nas funções nutricionais. Primeira fonte de satisfação, a alimentação se processa pelas vias de uma zona erógena, a boca, também nosso instrumento inicial de exploração do mundo e, acoplada a essa atividade, a pulsão sexual surge como um desvio do instinto, no autoerotismo dado pela repetição de uma vivência de satisfação já obtida. Importa observar que, se supomos essa repetição, devemos supor a existência de um outro agindo como elemento, desde o princípio, propiciador da vivência satisfatória.

No autoerotismo o prazer obtido provém de sensações oriundas da fragmentação corporal vivenciada por algo igualmente fragmentário. Acerca dessa ideia seria interessante pensar se a chamada falta de unidade corporal pode ser assim descrita já que, para que se pense em fragmentação deve-se poder imaginar algo da ordem de uma unidade processadora capaz de posteriormente, determinar a desfragmentação. Como sabemos que essa unidade anterior dificilmente poderia ser teorizada de maneira sustentável, teríamos que pensar uma unidade externa, completa, narcisizada, que pudesse prover a argamassa dessa sedimentação. Essa liga, será dada pela narcisização do bebê pelo casal parental.

É importante pontuar, portanto, que o autoerotismo é diferente da fase narcísica, na qual penetramos pela diferença do eu, que adiciona essa ação psíquica necessária à criação do narcisismo. O eu é, a um só tempo, objeto que pode ser libidinizado e reservatório da libido que será enviada aos objetos, mas que poderá ser retomada (retornar ao eu).

Se tínhamos até este ponto uma evolução libidinal, vemos agora a passagem do autoerotismo para o narcisismo intermediada pela atitude dos pais, o que nos dá a noção de que esse primeiro narcisismo vem de fora. Para os pais o bebê é o ideal e, ao olhá-lo, vêm concretizadas tal maximização de seus ideais de perfeição, que Freud chamará, ao que o bebê recebe dessa forma, de eu ideal. Freud enuncia que “o narcisismo nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida pode justificadamente ser atribuído a toda criatura viva.” Não haveria mãe disposta a fazer o que usualmente faz por seus filhos caso fosse capaz de os pensá-los como outro.  Criar um filho é uma tarefa longa, cansativa e angustiante, que pede uma explicação para tanto empenho e aparente prazer. O que acontece, de fato, é que fazemos pelos filhos como se fizéssemos por nós mesmos, tal é o grau de narcisismo que impregna essa relação.

Seria interessante ainda refletir sobre a semelhança e a distância entre o narcisismo que justifica o delírio megalômano e o narcisismo que nos leva a escolher para objeto de amor alguém gostaríamos de ter sido. Se tentássemos identificar narcisismo com egoísmo, terminaríamos no paradoxo de identificar egoísmo e generosidade. Os mecanismos que nos movem a identificarmo-nos com o outro e fazê-lo objeto de nossa generosidade devem-se quase sempre à nossa possibilidade de vermo-nos a nós mesmos no outro e às nossas necessidades nas suas. Não é, ao menos para a psicanálise, novidade nenhuma a relação entre generosidade e onipotência, onipotência e narcisismo.

Um dos ângulos dos quais se pode ver o narcisismo é o de uma relação de amor consigo mesmo que se transforma numa demanda: a demanda de ser objeto do amor de um outro alternando as posições Narciso/Espelho para perpetuá-las. O eu ideal cristaliza-se como uma referência permanente, uma ilusão e um modelo ao qual o eu sempre buscará retornar: uma posição na qual estava a perfeição narcísica e na qual se assenta a ilusão de ter sido amado e admirado incondicionalmente. 

Parece-nos que os pais, para poder atribuir aos filhos esse lugar majestático da projeção do próprio narcisismo terminam por impor-se a si mesmos limites que poderíamos chamar anti-narcisistas, na medida em que cedem ao outro aquilo que não puderam ter para si. Se pensarmos que esse outro é visto como continuação dos próprios pais, invertemos evidentemente o raciocínio, mesmo que não se possa dizer sem ressalvas que o peso de um investimento feito naquele que dá continuidade ao indivíduo e o investimento no próprio indivíduo, possam ser consideradas coisas de idêntica natureza. É como se o amor implicasse na narcisização para que a constituição se efetuasse em dado momento e, em sua retirada, para que a estruturação pudesse realizar-se, em outro momento. O narcisismo de que os pais embebem sua relação com os filhos semeia o solo psíquico para o surgimento do eu ideal, que por sua vez desbasta o terreno para que o ideal do eu alcance sua posição.

Com a introdução do narcisismo, o eu pode posicionar-se como rival do objeto na disputa pela libido. O narcisismo primário poderia ser imaginado como uma espécie de consciência incipiente de si, ainda que fragmentária. Apesar da presença já concreta do outro, a questão da escolha entre libidinizar a si ou ao outro não está colocada, já que o outro é muito mais uma fonte propiciadora de vivências do que uma alteridade.

Em Uma introdução ao Narcisismo, a propósito da vida erótica das pessoas, Freud define a escolha de objeto anaclítica e a narcísica. Em oposição às escolhas que são de caráter mais narcisista, Freud indica que seria possível a escolha por um modelo que se traduziria por uma espécie de agradecimento a um outro, a que chama de escolha anaclítica e que tem por modelo um dos pais. Mas é inusitado pensar em termos não-narcísicos o amor que nos narcisizou e cuidou por toda uma vida. O que se pode depreender dessa observação é que as escolhas estão sempre marcadas pelo narcisismo e que dificilmente se poderia determinar aquelas a que ele não contamina. 

A escolha objetal deriva, na verdade, das primeiras experiências de satisfação. Freud estabelece uma divisão entre os tipos de escolha possíveis e chama ao primeiro tipo de escolha anaclítica ou de ligação: ama-se segundo o modelo do amor recebido na relação com as figuras parentais, aquela que alimenta, aquele que protege. O modo de escolha anaclítico, segundo Freud, é o modo de amar tipicamente masculino. A escolha feminina corresponderia mais frequentemente ao segundo tipo que é o da escolha tipicamente narcísica. A mulher, enuncia Freud, ama ser amada. Mas, ainda que as coisas por vezes funcionem da maneira descrita, o próprio Freud é levado a perguntar-se que razão teriam os homens, tão anaclíticos, para se apaixonar por narcisistas; por que razão sentir-se-iam atraídos por quem ama ser amado, se não por identificarem aí uma condição que reconhecem através de seu próprio narcisismo?

Freud afirma que os dois modos de escolha de objeto (narcísica e anaclítica) podem ser utilizados por qualquer indivíduo, já que dispomos todos, originalmente, de dois objetos: o próprio eu ou aquele que cuidou de nós. A divisão entre os dois tipos de escolha não se faz, evidentemente, através de uma linha tão nítida quanto se poderia desejar. Se a escolha anaclítica se baseia num modelo primário de relação com o objeto e o eu se encontrava no lugar do objeto do amor parental, isso demonstra a dimensão essencialmente narcísica também nesse caso. Poderíamos pensar ainda que, em diferentes momentos de uma mesma relação, a ênfase dos investimentos pode recair sobre o eu ou sobre o objeto, resultando numa variação adicional na escolha.

A necessidade de ser amado e desejado pelo outro é certamente um fator de aprisionamento, mas também de estímulo à transformação, independentemente do tipo de escolha e de haver ou não uma diferença de fato entre elas. Há uma clara postura narcisista no desejo de tornar-se objeto de amor do outro, há também uma admissão de incompletude, de necessidade do outro que poderíamos, talvez, pensar como uma atitude, esta sim, menos narcísica. 

André Green observa que os narcisistas nos irritam mais que os perversos. Não sem um certo sarcasmo, afirma que isso ocorre porque talvez nos seja possível sonhar com sermos objeto do desejo de um perverso enquanto o objeto do narcisista não pode ser outro que ele mesmo: “Narciso nega Eco como os analisandos que não entram em transferência nos ignoram magnificamente”. Refere-se aos narcisistas como pessoas feridas, carentes do ponto de vista do narcisismo. Como frequentemente as feridas que não se cicatrizam são devidas a ambos os pais, pergunta-nos se eles podem realmente amar algo além de si mesmos.

As realizações do que chama de narcisismo de vida, que se realizam nos investimentos em objetos concretos ou idealizados, nunca são totalmente bem sucedidas. O descentramento promovido pelo desejo coloca o sujeito na busca pelo objeto de satisfação, fazendo o “sujeito viver a experiência de que seu centro não está mais nele mesmo”. Por outro lado, a ambição da autossuficiência afetiva mostra-se também ilusória: o eu jamais consegue substituir completamente o objeto. Quando é possível abandonar toda busca de satisfação, a vida torna-se equivalente à morte “porque é o alívio de todo o desejo”. Introduzindo a matiz do narcisismo de morte, o prazer não será deposto pelo desprazer, mas pela indiferença, a anorexia de viver, verdadeira petrificação do eu que visa a inércia na morte psíquica. Com essas fortes imagens André Green nos tenta dar a dimensão do sentido e do objetivo do narcisismo de morte.

Seria o narcisismo uma fantasia? Teríamos de fato algum dia sido capazes de amar mais do que a nós mesmos? Todos podemos provavelmente lembrar de momentos em que, frequentando os primeiros anos de escola, afastados do ambiente e das pessoas que conhecíamos, nos deparávamos com alteridades e diferenças mais acentuadas. Alunos do segundo ano, víamos os alunos do terceiro como “inimigos enormes e agressivos”. O inimigo era promovido conosco e, assim, ao atingirmos o terceiro teriam se deslocado para o quarto. Temíveis eram ainda os estranhos de outro bairro; talvez permaneçam ameaçadores para muitos, mesmo depois de adultos, os muito pobres e os demasiadamente ricos, talvez os muçulmanos se formos católicos ou protestantes. O narcisismo talvez possa ser visto longe das patologias comuns perambulando também entre os xenófobos, usando a máscara da Ku-Klux Klan. Traveste-se em piedade nas famílias sensibilizadas que se dispuseram a adotar as loiras crianças órfãs do massacre de Srebrenica (1995) mas que ignoraram, como a maior parte da imprensa, a orfandade, a fome, a miséria absoluta dos órfãos do genocídio Tutsi em Ruanda (1994). Suspeito e temível continua sendo tudo o que não cabe no espelho.

Não cabem aqui julgamentos morais, mas a provocação nossa a percepção de que o narcisismo nos leva a escolhas compatíveis com algo que tenha semelhanças ou partes semelhantes a nós mesmos, algo com que possamos nos identificar e fecha, com uma barreira muito pouco permeável, nosso acesso afetivo ao diferente.

A inútil evitação da fragilidade

O homem contemporâneo é um ser extremamente mimado. Não me refiro é claro aos que vivem à margem, porque o medo de que lhes falte a comida de amanhã preenche o dia de hoje. Entre os miseráveis a filosofia em geral não prospera, como pouco floresce onde tudo falta. Refiro-me aos que, centímetros acima ou abaixo de nós na pirâmide, têm uma condição de vida que implica ao menos uma maior dignidade.

A pós-modernidade deixou claro que o tal direito a ser feliz é uma babaquice sem fim, que ninguém é um ser-especial-maravilha-excepcional, mas o humano permanece vítima de suas crenças sem se decidir pelo luto. Continua a se achar especialíssimo e fazer textos sobre suas mazelas de desconfortos e a interessar-se pela dor do outro tanto quanto o outro se interessa por suas fotos de pratos cheios em restaurantes aleatórios. Tende a acreditar no like misericordioso que é dado para contar com o seu na próxima.

Concordo que o homem está num lugar bastante ameaçador. Navega numa minúscula pedra mal solidificada por um espaço vazio, silencioso e escuro sem saber qualquer coisa sobre o motivo ou sobre o que acontece depois. Não tem quaisquer respostas e tampouco a quem perguntar. Inventa Paraísos, Valhalas, reencarnações. Receoso de que a resposta verdadeira seja muito diferente da que gostaria, tenta criar ordem e sentido com manobras razoavelmente perigosas.  

De todos os animais na terra somos os únicos que sabemos que no final tudo dará errado. Vamos envelhecer, sofrer, morrer. Mas os que ousam falar sobre isso, que aliás é de todos sabido, são linchados, evitados, taxados de pessimistas e até sádicos. Não, não queremos saber de nada disso. Vivemos sequiosos de encontros, festas, bons vinhos, o que, adianto, acho excelente. O problema é que buscamos uma coisa para camuflar a outra.

Desde milhões de anos, provavelmente, um dos mais fortes fatores de sobrevivência foi a capacidade de ignorar a realidade de nossa fragilidade e desamparo. Atribuíamos força de proteção a plantas mágicas, animais com ligações insuspeitas com o universo, constelações fornecedoras de sentido. Figas, patuás, orações, a tudo nos apegamos para controlar o incontrolável. Toda nossa cultura está baseada num plano de negação da morte. Fala-se em futuro, felicidade, na possibilidade de viver cem anos. Próteses vitamínicas e exercícios. Eternidade.

Tanto a certeza da morte quanto a angústia relativa a isso são constitutivas do humano. O bebê, sem que tenha ainda engendrado um ego, apoia-se no narcisismo parental para a construção de um projeto que lhe permita enfrentar essa angústia. Movimenta-se dentro de um projeto heroico, transmitido pelos pais, que permita conter a angústia de forma a não paralisar e conseguir negar, sem refutar, a certeza da morte.  Essa é uma ideia do livro A Negação da Morte, de Ernest Becker. Para ele o grau de adaptação do indivíduo estaria ligado ao nível de encobrimento que o projeto heroico consegue trazer para ele. Nesse sentido, os que melhor mentem para si mesmos, os que se enganam de forma mais convincente, estariam mais bem adaptados. Caso as angústias se descontrolem é sempre possível mais uma mentira tamponadora. Ele as chamou de mentiras caracterológicas ou mentiras vitais. São mentiras que operam tão fundo no psiquismo que dispomos de eficientes mecanismos para impedir que a consciência que poderia aboli-las venha à tona.

Tudo isso cintilou e boiou ameaçadoramente na superfície da pandemia. O homem acaba se vendo como o que é, uma espécie de Deus amarrado a um corpo que apodrece. Um corpo que se desfaz sob o ataque da mais primitiva e tosca das criaturas, um vírus que nada sabe além de se replicar infinitamente.

É verdade que os que são muito fortemente tomados pelo medo acabam por paralisar. Mas tudo depende do momento. Onde a vida está no ritmo da suposta normalidade, funciona. Mas em tempos de ameaça, guerras, pandemias, terremotos, o mecanismo de negação é extremamente perigoso. Uma grande parte dos que encontraram sequelas graves e mesmo a morte poderiam ter sido poupados se tivessem acionado mecanismos de continência. Esses se contaminaram em festas, viagens de recreio, contatos sem proteção, enfim todo tipo de risco que poderia ser evitado. É o momento em que as mentiras protetoras passam ao campo contrário.

A passagem do Capitalismo de Produção ao de consumo teve que buscar formas para a expansão econômica. Uma delas foi a criação de um novo mercado de necessidades. Veio com ele um modelo de felicidade que pode ser mensurado por uma lista de itens que comportam bens variados. A lista é ampla. Inclui o tipo de casa e tamanho, localização, mobília, os eletrônicos de última geração e, principalmente, as chamadas experiências. A lista foi incorporada de forma definitiva ao significado de vida propriamente dita. Muitas pessoas de quem ouço os relatos sofrem por sentir que estão perdendo a vida, por privações insuportáveis, que ficam localizadas entre uma gama que está entre ir a bares, shows ou fazer viagens. Viagens que muitos de nossos avós e bisavós nunca tiveram ou quiseram.

As grandes epidemias do passado impactaram a gestão pública, a economia, a organização da força de trabalho, a ciência e a tecnologia. Mas do ponto de vista moral praticamente não nos afetaram em nada. Ao contrário, o que de fato vi foram os privilegiados mais preocupados com suas perdas em moeda e diversões do que com o problema de populações periféricas que transportavam nossos alimentos e faziam compras em supermercados e lojas para que eles permanecessem protegidos. Até onde pudemos ver a riqueza dos ricos aumentou enquanto o valo da pobreza se aprofundava. Moralmente não vejo sinais de que tenhamos crescido em alguma coisa.

Freud percebeu que só conseguimos viver a felicidade por alternância. Ninguém apreciaria os finais de semana se não tivesse trabalhado por vários dias. Nem as férias se não trabalhasse meses. Assim funcionamos nós. A pandemia nos obrigou ao isolamento, a conviver mais com nossa condição insignificante e finita sem as distrações habituais.  O prazer vai depender muito características individuais e do que cada um se diz sobre. Houve quem tenha gostado de conviver mais com a família, não ter que aguentar o chefe pessoalmente ou não enfrentar horas no trânsito. Há quem tenha tido saudades do trânsito e ansiasse por férias da família.

Mas o grande ganho, certamente foi o da criatividade. Acuado, o ser humano continua acionando mecanismos para transformar finitude em eternidade, dor em prazer. A dor é dada, mas o prazer tem que ser conjurado. Na conjuração, a realidade se transforma através do que nos dizemos sobre ela que, como uma mulher, torna-se sedutora se amorosamente a desejarmos e dissermos bela. 

Projeto Ser Humano: falha total?

Lentes são deformadores ou retificadores que adquirimos através da vida. Podem não apenas alterar, mas constituir a realidade de cada um. As que trazemos da infância são as mais perigosas porque dificilmente as percebemos. Com elas pode vir tanto o time do coração quanto o horror ao futebol. Outras chegam com o tempo, fruto de buscas ou de inércia. São lentes que enviesam o olhar, que enquanto nos abrem horizontes de um lado fecham-nos de outro. A lente da psicanálise fechou-me o das crenças religiosas, a da política tirou-me a ingenuidade de esperar por alguém que queira governar buscando algo mais que o poder ou a glória. Mas ao contrário do que se pensa, a ausência de crenças é bastante apaziguadora para aquela que, tendo sido alma, transformou-se em psiquismo, prensada a frio na mó dos aprendizados.

A pós-modernidade, onde tudo que nos permitia sonhar e criar utopias foi praticamente destruído, produz queixas ressentidas, decepcionadas, onde se apregoa que a humanidade não tem jeito, que não deu certo. Mas não deu certo em relação a que? Não há solidariedade, as guerras e polarizações se multiplicam. Mas quem a compara assim a uma “humanidade ideal” tende a consumir soluções baratas nas lojas de um e noventa e nove das quase filosofias. Ou a criá-las, o que rende um bom dinheiro.

A empatia e a solidariedade, não são o que distingue o humano em geral. São sentimentos que devem ser implantados a duras penas. E implantes, sejam eles de dentes, seios ou sentimentos, são sempre artificiais e causam reações autoimunes na maioria das vezes. É claro que, sem esses implantes, a vida em sociedade seria ainda mais difícil. Mesmo a tentativa de implante no geral é falha. No geral conseguimos quando muito agir “como se” fôssemos solidários e empáticos. Mas em épocas como a que vivemos isso também é dispensável e o contrário chega a ser até mesmo louvável.

Ainda assim o ser humano precisa sonhar com um mundo diferente daquele em que vive, mundo que descreve deliciado, em detalhes, como quem descreve as cintilações furta-cor nas pestanas de um unicórnio. Mas as descrições não coincidem jamais. A felicidade tem uma concepção particular para cada um. Um identifica o mundo do outro, em sua diferença, como o que impede a existência do seu. “Bastaria que quiséssemos a mesma coisa, mas você não quer e priva o mundo de todo o bem, de toda a harmonia”. Assim, a destruição do mundo do outro torna-se condição de construção do meu próprio. Nisso estão as raízes das guerras religiosas, ideológicas e quaisquer outras que impliquem em diferenças de concepção mais ou menos antagônicas.

Parte dos humanos publicam nas redes cenas em que um leão ou o urso abraçam uma garotinha e deixam-se acariciar, em que um enorme tigre brinca mansamente com um coelhinho macio. Emocionam-se com a farsa que criam ao recortar situações bastante atípicas e tentar generalizá-las. Pregam comovidos essa pieguice de que os animais são mais humanos que nós. Basta um deslize, uma pequena falha e o animal volta, recupera sua natureza que, diga-se, nada tem de cruel. De forma prática e tranquila, reconhece que o amigo temporário está em seu cardápio e saboreia-o sem culpa. A culpa, essa sim, é exclusivamente humana, mas tão prótese quanto outros sentimentos.

Yuval Harari, ao apresentar no livro Sapiens o resultado de seu extenso estudo sobre a humanidade, argumenta que o Homo sapiens dominou o mundo por ser um animal único, capaz de formar grandes grupos de cooperação. Consegue essa proeza por outra característica única que é a de criar coisas e entidades que não existem, acreditar nelas e estender suas crenças a grandes grupos. São produtos da pura imaginação, como deuses, nações, dinheiro e direitos humanos. Isso faz dessas religiões, estruturas políticas, mercados e instituições legais, em última instância, apenas ficção. Mas ficções que movem o mundo, provocam tanto laços quanto guerras. Usaram, basicamente, toda essa criatividade para exterminar todos os outros hominídeos.

Freud dizia que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas. São criaturas constituídas por elevado percentual de agressividade, para quem o outro frequentemente é apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém a quem podem explorar, escravizar, roubar e matar. E é o que fazem constantemente apoiados em morais escolhidas em religiões de conveniência regidas por Deuses pré-pagos e voláteis. Nenhum outro animal em toda a Terra estupra os filhotes de sua própria espécie. Essa coisa brutal que muitas vezes leva à morte a própria prole, é exclusivamente humana.

O ser humano é um ser do desejo e não da necessidade, essa foi uma das grandes falhas do socialismo real. São seres que não só criam utopias, mas sonham e se espelham nelas.

Coisa que muito me diverte são as falas que descrevem o verdadeiro amigo.

“Um verdadeiro amigo é aquele que entra quando o resto do mundo sai. Alguém que te conhece tal exatamente como você é, te compreende te acompanha nos sucessos e fracassos, celebra tuas alegrias. Um amigo verdadeiro permanece ao seu lado mesmo quando você está errado, sem te julgar. No lugar de falar da própria vida pergunta o que há de novo sobre você.”

Um verdadeiro amigo, em suma, não é aquele que eu pretendo ser, mas o que eu pretendo que o outro seja.

Mas sim, houve uma falha. Uma enorme falha. Essa falha está no arquétipo inviável que o ser humano construiu para seu próprio modelo. Um humano bondoso, generoso, russoniano, que jamais existiu. Dizer que falhou é uma forma de não se reconhecer no que há de pior. E como cada um de nós sabe-se, no íntimo, invejoso, cruel e egoísta, resta-nos votar no bom tirano esperando que ele seja o que jamais seremos e restaure o humano ficcional em cuja construção falhamos miseravelmente.

Do que é feito o sonho?

Todo ser humano em algum momento teve aquele instante de intrigante fascínio por um sonho ao acordar. Como se forma essa trama, quem é esse roteirista e esse cenógrafo que agem tão rápido? Como são criados diálogos e compostos grupos de pessoas que acreditamos jamais ter visto?

Percebendo sua estreita conexão com os problemas apresentados pelos pacientes que os relatavam Freud começa a reparar na importância do sonho. No episódio da morte do próprio pai, Freud inicia o que poderia ser encarado como uma autoanálise, utilizando como material os próprios sonhos. Não eram desprezíveis os conflitos que Freud vivia em relação ao pai, homem correto, sério, que a despeito disso havia decepcionado Freud por não reagir com a devida força às ofensas que recebia dos não-judeus na Viena de uma época que comportava fortes núcleos de antissemitismo. Foi através da detecção de como esses conflitos apareciam fundidos e mascarados nos intrincados enredos dos seus próprios sonhos que Freud se volta para eles. Estudando a maneira como esse enredo, a que nomeia trabalho do sonho, se constitui, chega aos cinco mecanismos-elementos principais: a condensação, o deslocamento, a figurabilidade, a elaboração secundária e os afetos, elementos fundamentais da construção dos sonhos propriamente ditos.

Para Freud o sonho traz, invariavelmente, uma mensagem e, ao assumir isso, rompe com a leitura que a ciência fazia desse fenômeno. A ciência parte do princípio de que o sonho não tem sujeito – vem do nada e ao nada retorna – manifestação epifenomênica de um certo estado do sistema nervoso. Freud afirmaria que o sonho se refere ao sonhante, que é seu sujeito e que algo apartado, isolado, se ressimboliza no sonho.

Uma parte do sonho se compõe de um conteúdo manifesto que encobre (embora se possa dizer que também tenta mostrar) os pensamentos latentes. Freud compara isso às charadas, onde as imagens têm que ser decodificadas, já que constata a existência de regras para que as ideias latentes, produtos do recalque e da defesa, se transformem no conteúdo manifesto. Essas ideias não têm como se manifestar de maneira direta. A gramática para que uma coisa seja transformada em outra é a gramática do disfarce, mas um disfarce que desfruta o dom de indicar o caminho da revelação, de tal forma que se pode dizer que todo recalque, toda defesa, são destinados ao fracasso.

O sono é uma maneira de o sujeito recolher temporariamente para si os investimentos postos no mundo exterior. As ideias latentes, que mais não são que coisas recalcadas, defendidas, atos não realizados, de forma automática, movidas pelas cargas, animadas pela pulsão, querem a todo custo emergir, permitir ao sujeito algum tipo de satisfação. O sonho é tido como guardião do sono na medida em que transforma essas ideias latentes, altamente carregadas de cargas inespecíficas, que almejam simplesmente sair, em algo que pode aparecer no conteúdo manifesto. Ainda que estejamos adormecidos essas ideias continuam a constituir a face daquilo que não podemos saber. Disfarçadas, transitam pelo grande enredo com a máscara do conteúdo manifesto. Nesse jogo a regra fundamental é a formação de compromisso, através da qual algo que o sujeito não deseja saber a seu respeito é admitido na consciência desde que venha misturado e disfarçado das coisas de que já se encontravam na consciência. O sonho é, normalmente, muito menor que suas ideias latentes e tem a mesma estrutura do sintoma, portador a mesma a ideia de formação de compromisso.
Descobrimos encantados que cada um dos lugares que vimos, seja pessoalmente, em filmes ou imagens, todas as pessoas que conhecemos ou vimos em filmes, tudo que enfim vivemos e nos marcou, permanece num grande bastidor de onde se escolhem as montagens que movimentam os sonhos a cada noite.

Biopoder: quando o sofrimento normal é transformado em doença

A cada ano aumenta mais o número de pessoas diagnosticadas com algum tipo de transtorno mental. Depressão, bipolaridade, TDAH, Síndrome de Burnout, Transtorno de ansiedade Generalizada. Os nomes não acabam por aí e multiplicam-se a cada dia. Proporcionalmente surgem medicamentos psiquiátricos que se pretendem específicos. Sabia-se, até algumas décadas atrás, que o sofrimento e a alegria são parte da vida de qualquer um e não representam patologia. Mas a partir de certo momento qualquer tipo de sofrimento tornou-se inaceitável, qualquer comportamento dissonante patológico.

Para Foucault houve uma virada no século XIX a que ele chamou “assunção da vida pelo poder”. Foi o movimento que estabeleceu poder sobre o homem enquanto ser vivo, estatizou o que seria biológico.Foi nesse século que o mundo ocidental sofreu uma grande inversão no modo como se exercia o poder. O direito político foi mudado e de certo modo invertido. Ainda conforme Foucault, temos, desde então, o direito de “fazer viver e deixar morrer”. Foi uma mudança que ocorreu gradativamente a partir dos séculos anteriores e cujo intuito era controlar a localização dos indivíduos, agrupá-los ou separá-los, controlá-los. Esses corpos deviam também ser treinados e moldados de forma a se tornarem mais úteis para a produtividade no trabalho.

Com o tipo de sociedade que temos atualmente, feito de núcleos familiares fechados, enorme competitividade e um individualismo crescente seria considerado normal que a solidão, a tristeza e outras formas de sofrimento fossem considerados normais. O movimento de medicalização da vida vai exatamente transformar um sofrimento que é coletivo em um tipo de problema individual com um nome específico. As reações normais às perdas, medos, incertezas são considerados problemas médicos e, como tais, medicados.

Um caso gritante é o das crianças em idade escolar. Uma criança que não funcione segundo padrões é rapidamente diagnosticada com TDAH e medicada com Ritalina. Quando as crianças podiam correr na rua, gastar energia a vontade, eram encaradas de forma diferente do momento em que começaram a ter que gastar sua energia em apartamentos, enlouquecendo os pais que desejam sossego ou têm tarefas a fazer. Ás vezes a questão está em pais que não impõem quaisquer limites aos filhos e, de repente, querem que eles encarem naturalmente a necessidade de estudar e prestar atenção a aulas. Outras vezes o problema é com política educacional ou projeto pedagógico da escola. Mas é muito mais confortável transformar isso em problema pessoal a ser resolvido com medicação.

Sentimentos como os momentos de tristeza e períodos de luto, estão sendo diagnosticados como depressão. A agressividade, a preguiça, a arrogância, parece que qualquer tipo de comportamento corresponde a um diagnóstico. Um sujeito que comete um assassinato ou atrocidade é imediatamente considerado psicótico ou perverso, o que nos impede de admitir esse tipo de comportamento como humano e nos protege quando nos julgamos entre os “normais”. Tenho recebido pacientes que, sem qualquer patologia, começaram a ser medicados em algum momento, receberam um diagnóstico equivocado e, depois de anos, começam a sentir os efeitos maléficos desses medicamentos que mais matam do que ajudam e que são muito difíceis de abandonar. O que deveria ser temporário torna-se permanente e o que seria tratamento torna-se vício.