(ou A Inviabilidade das Sociedades Igualitárias por uma ótica freudiana)
Em uma de minhas viagens enfrentei o contratempo de voar no sentido contrário ao que pretendia. Estando em Madri, tomei um avião até Zurique, para só então voltar a São Paulo. No momento em que o avião levantou voo, uma visão produziu em mim uma forte impressão de estranhamento. Aquela parte de Zurique, ao redor do aeroporto, pareceu-me pertencer a uma estranha cidade. Não havia os usuais muros ou divisões: apenas pequenas sebes, mais decorativas que demarcatórias, separando tenuemente as casas. Canteiros e calçadas formavam peças únicas, extensões de um imenso jardim. Eram habitantes destemidos ou não havia o que temer? Que tipo de laços estaria ali estabelecido? A primeira hipótese foi a de que as pessoas que ali viviam talvez contivessem em si muralhas tão grandes, fortes e poderosas, que as separações físicas seriam desnecessárias. Percebi mais tarde meu engano de perfeita desconhecedora: Zurique seria bem diferente daquele bairro que circunda o aeroporto, mas ainda assim uma das cidades com maior qualidade de vida do planeta.
Diante do estranhamento que determinadas formas de organizar espaços e relações podem provocar, veio-me um pensamento relativo ao eterno sonho humano de igualdade, que supõe a possibilidade de uma sociedade isenta de ameaças e baseada em relações de confiança. São itens compreensíveis, já que a ameaça e a desconfiança geram enorme insegurança e são fontes de desprazer nada apreciadas pelo ego. Talvez fosse possível relacionar esse sonho ao desejo de resgate daquele momento mítico e para sempre perdido onde nos fundíamos com a mãe. Não deve ser casual a semelhança existente entre o céu prometido, o paraíso perdido e os projetos de sociedades ideais. Mas não podemos negar o que dizia Schopenhauer sobre nossa capacidade de tentarmos nos livrar de um desprazer e acabarmos nos defrontando com outro:
A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem. Os homens exprimiram esta oscilação de modo curioso; depois de haverem feito do Inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram para o céu? Justamente o aborrecimento.
No paraíso o desejo perderá literalmente o poder de nos infernizar. Estaremos finalmente livres de nossos corpos e de nossa libido. Exatamente por isso esse mesmo paraíso não terá nenhuma angústia… nem nenhum atrativo. Então nós o adiamos para quando, purificados, pudermos finalmente compreender “qual é a graça” de mantermos a vida e a consciência em uma forma incorpórea e, digamos, “despulsionada”.
Freud, em O Mal-estar na Civilização, assinala que o plano de felicidade desejada pelo homem relaciona-se a, nada mais nada menos, que a vivência de intenso prazer e a eliminação do desprazer, sem possibilidade alguma ser executado; todas as normas do universo lhe são contrárias. Para tornar ainda piores essas perspectivas, Freud acrescenta que:
Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela acaba produzindo apenas um sentimento de contentamento muito tênue; só conseguimos obter prazer intenso através de um contraste e nunca de um determinado estado de coisas.
Trata-se de um dos paradoxos humanos: aquilo que hoje nos parece paraíso pode transformar-se no tédio de amanhã. Retomando Schopenhauer, observamos que aqueles que têm a rara sorte de ter um número muito grande de necessidades satisfeitas sem grande esforço e pouca razão para lutar e sofrer, mergulham, no mais das vezes, em crises onde a queixa é de que a vida já não tem sentido. Padecem, geralmente, de uma vaga e angustiante sensação de inutilidade. Em outras palavras, o paraíso, seja ele qual for, jamais será satisfatório. A satisfação que talvez trouxesse teria, quando muito, um prazo de validade determinado.
Concluiu que o homem tornou-se um “Deus de prótese”, e que as épocas futuras aumentariam a semelhança do homem com Deus sem que isso o tornasse mais feliz. O primeiro passo nessa direção foi dado no momento em que dominou a natureza, encontrando modos para enfrentar as intempéries e cultivar alimentos que eram encontrados apenas em determinadas épocas do ano; em seguida pelos avanços na química, biologia e medicina, ampliando as possibilidades da vida através de intervenções cirúrgicas, químicas e profiláticas. Isso nos traz uma esperança de obter o paraíso em vida. Doenças, pragas, fome, antes considerados castigos divinos, ficam minimizados. Ao mesmo tempo, teorias vindas da sociologia, da política e sabe-se lá de onde mais, procuram mostrar caminhos para que os conflitos da convivência fossem contornados e possamos implantar o amor e a harmonia, que desde a bíblia ficou inviabilizada – pela descoberta das diferenças intransponíveis – na fábula da construção da Torre de Babel.
“… a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada. … Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural.” (FREUD, 1930 [1929] / 1996, pág. 49.)
O homem cristão vê em Deus um pai engrandecido, protetor, que realiza nossos desejos, e cuja ira se aplaca diante dos sinais de remorso, e espera encontrar no “próximo” e principalmente naqueles que encarnam a função de líderes, um incansável senso de justiça e bondade.
Qual o funcionamento de um paraíso e seus componentes básicos? Como funcionaria o amor, por exemplo? E a solidariedade, a harmonia, a amizade, como funcionariam dentro de uma sociedade igualitária para que esse funcionamento satisfizesse, não a todos, mas ao menos a um pequeno grupo de humanos? O que cada um permitiria e proibiria ao outro? E a si mesmo?
Nossas ilusões podem despencar em queda livre se acreditarmos na afirmação freudiana de que “Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar.” E note-se que ele limitou a apenas três as direções de onde nos pode vir a infelicidade. A primeira seria nosso corpo, que é vulnerável, adoece, envelhece e morre; a segunda seria o mundo externo com as tramas que nos cercam (política, economia, por exemplo) somadas à natureza –, que pode voltar-se contra nós e, finalmente, aquela que desde cedo é a mais clara, torturante e menos aceitável: “de nossos relacionamentos com outros homens”. Menos aceitável porque, para nosso azar, é essa a fonte de onde podemos e necessitamos obter maior prazer. É na gratificação proveniente de nossos relacionamentos que esperaríamos encontrar o céu, mas são eles, exatamente, nossa maior porta de entrada para o Inferno. O paraíso é o amor e “o Inferno são os outros”, como já bem dizia Sartre. De certo modo estamos condenados à uma certa forma de maldição: sem o outro não há como experimentar o paraíso e, com ele, não há como nos livrarmos do Inferno. Não podemos abrir mão de nossos vínculos tornando-nos autossuficientes porque, dessa forma, não conseguiríamos satisfação; não podemos ter satisfação porque não podemos controlar o outro a ponto de fazer com que atenda plenamente nossos desejos e anseios. Como não passamos de deuses incompletos, não temos como transformar o outro à imagem e semelhança de nosso próprio desejo e ideal e tampouco podemos amá-lo como a nós mesmos se essa transformação não se operar.
Apesar de tudo isso, a humanidade jamais deixou de sonhar com uma sociedade harmoniosa e sem desigualdades. Chegam diariamente a nosso Whatsapp, textos que nos falam de como devem portar-se os “verdadeiros amigos”, da vantagem da generosidade, do perdão, da aceitação das diferenças. Isso é o que esperamos do outro, mas e nós? Mesmo em grupos com pequeno número de participantes, ligados por laços relativamente próximos e significativa possibilidade de identificação, as diferenças de opinião e visão provocam graves conflitos e a harmonia jamais é mantida por muito tempo. Cisões e rupturas em sociedades, partidos, associações, mostram-nos essa realidade diariamente. O próprio núcleo familiar é, constantemente, ninho de conflitos intensos e desgastantes. Porque então a persistência do sonho?
Retomando o pensamento de Freud, temos que admitir que grande parte do fracasso em implementar sociedades mais justas relaciona-se às dificuldades do ser humano em relação à renúncia e à solidariedade. Isso é importante para entender as razões pelas quais sociedades igualitárias jamais se estabeleceram de fato ou, quando se estabeleceram, terminaram em derrocada e porque grupos que produzem a mudança terminam assumindo posturas semelhantes às que combatiam no início.
Os fantásticos projetos de mundos idealizados podem ser alcançados por caminhos ricos e variados. Comecemos pela literatura. George Orwell em seu “1984”, onde cria a figura inesquecível do Grande Irmão, símbolo de toda a coerção e controle possíveis. Satiriza o paraíso como o domínio de um Estado onipresente, que se atribui o direito de alterar a história, o idioma, de oprimir e torturar o povo e de travar uma guerra sem fim com o objetivo de manter inabalada a estrutura de poder. Trata-se de uma metáfora sobre o poder e as sociedades modernas. George Orwell escreveu-o com certo sentido de urgência, para avisar a seus contemporâneos e às gerações futuras do perigo que corriam por perseguir modelos inviáveis de mundos ideais. Como um dos primeiros simpatizantes ocidentais da esquerda, terminou percebendo os caminhos pretendidos pelo stalinismo. Representa Stálin na figura do Grande Irmão e, ainda preso à fantasia interna de algum tipo de pai engrandecido, cria para ele um, arqui-inimigo, Goldstein, representando Trotsky. O mesmo Trotsky que, na história real, aniquila o campesinato que não consegue atender suas exigências.
Em outro livro, “A Revolução dos Bichos”, Orwell retrata de forma admirável o que acontece com todo grupo humano que toma o poder. Dos Bolcheviques ao Partido Comunista da China, do partido de Fidel à esquerda tupiniquim, a história vai acrescentando dados de concordância à visão freudiana do humano. Um grupo de animais, revoltado com as condições em que vive sob o domínio dos humanos, resolve se rebelar, tomar o poder e estabelecer uma nova sociedade. Como seria de esperar, os líderes da rebelião defendem a igualdade e todos os mais elevados princípios e valores. No decorrer da transição, vão se tornando aos poucos idênticos aos humanos e criando para si privilégios injustificáveis enquanto exploram e humilham os que os ajudaram a ascender ao poder. “Todos os animais são iguais” (pág. 135), é seu slogan inicial. Ao final transforma-se em “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros” (pág. 135), paródia das justificativas capengas dos grupos que hoje ocupam o poder pelo mundo.
Passemos agora à História. Os modelos mais bem descritos e documentados são os que podemos obter dos projetos comunistas e socialistas de sociedade. Coloco-os logo em sequência às obras literárias que abordam o assunto porque não deixam, de certo modo, de partir de um projeto por vezes literário e utópico que tentará ser encenado no mundo concreto. No geral, o escritor puro e simples pode criar o paraíso e fazer-lhe a crítica, enquanto o teórico necessita de algum tipo de experiência empírica que venha a confirmar ou refutar sua hipótese. No campo social, que nada tem de científico, quando a prática não constata a hipótese parte-se para a busca de causas ou, mais frequentemente, de culpados. De qualquer maneira, uma das coisas que podem ser verificadas claramente quando analisamos as dificuldades que foram enfrentadas pela Rússia, é que o homem para o qual se construía aquele projeto, o sujeito, – ao menos aquele tal como é visto pela psicanálise – não foi levado em consideração. China e Cuba tentam ainda passar ao mundo a ideia de que vivem de fato numa sociedade de iguais. Mas a igualdade, se é que há, é mantida pela constante exclusão da diferença, pela eliminação da individualidade, ou seja, o massacre dos opositores, sustentado por uma cúpula que detém o direito de fazer aquilo que proíbe aos demais. No lugar de sujeitos, obrigatoriamente multifacetados, usou-se como sujeito-arquétipo desses projetos um homem idealizado que deseja a igualdade absoluta, ou seja, a indiferenciação.
Para que um desses projetos resultasse em uma nova forma de organização social, coisas bastante inviáveis se fariam necessárias. Primeiramente porque supõem que, tanto a fonte da desigualdade quanto de toda a insatisfação, venha principalmente da má distribuição de bens e riquezas. Poderíamos dizer que a desigualdade, nesse caso, refere-se ao social e que o poder, via de regra, está com quem detém a maior quantidade de bens. Esse raciocínio desvia do campo da pulsão sexual (que está, em alguma medida, atrelada à agressividade) para o campo das pulsões auto conservativas, todo o eixo da discórdia humana. A questão, conforme já apontamos e voltaremos a enfatizar, é que os “distribuidores” de bens e justiça jamais querem ter para si apenas o que dão aos demais.
Os projetos igualitários têm também, inicialmente, grande preocupação com a questão da distribuição do poder. Quase sempre planejam um certo rodízio preventivo, para impedir que uma pessoa ou um grupo fique por muito tempo no poder. O modelo preferido é aquele em que todos tenham a oportunidade de exercê-lo. Fica claro que é esperado que alguém que se mantenha por demasiado tempo no poder, que sinta seu gostinho inesquecível, pode vir a representar perigo. Isso porque o desejo de dominar e sobrepor a própria vontade à vontade dos demais é inerente ao humano e precisa ser regulamentada ou, para usar uma terminologia freudiana, é preciso que haja algum tipo de coerção para que seja mantida em níveis adequados. Isso fica bastante claro nos textos freudianos que tratam do narcisismo infantil e da onipotência. Evidentemente não se pode incluir nesse conjunto a totalidade dos humanos, mas os grupos ou indivíduos que aspiram ao poder dificilmente podem escapar dele. Quando falamos em grupo podemos pensar também em grupos menores, pequenas associações e na própria família, onde o jogo do poder sempre está claro e presente.
Ideal de eu: seu habitat
As próprias ideologias socialistas, ao tentarem se impor ao mundo, fizeram-no pela repressão, violência e extermínio de seus opositores, exatamente as atitudes que criticavam no grupo que se encontrava no poder à época de sua criação.
Recorro aqui a Zygmunt Bauman (2003 a) e sua noção de comunidade para penetrar por outro ângulo em algumas das questões abordadas por Freud em O Mal-estar na Civilização (1930 [1929] /1996), fundamentais para nossa reflexão. Podemos dizer que esses arquétipos idealizados não correspondem a possibilidades factíveis, mas servem, do mesmo modo que a distância entre o ideal de eu e o eu real, para que se estabeleça alguma mensuração e o nível das dificuldades para que essa distância seja – ou não – percorrida.
A comunidade, nos diz Zygmunt Bauman (2003 a), seria um lugar “cálido”, confortável e aconchegante.
“É um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo nos espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui na comunidade podemos relaxar – estamos seguros, não há perigos em cantos escuros. … Numa comunidade todos nos entendemos muito bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou surpreendidos. Podemos discutir, mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos melhor e mais agradável do que até aqui… “(BAUMAN, 2003 a, pg.07)
A simples descrição desse ambiente relaxante, para nós, que vivemos as agruras do dia-a-dia, promove uma sensação de intenso bem-estar interno. Essa descrição evoca quase tudo aquilo de que sentimos falta. Segundo a teoria freudiana, ao nos darmos conta da impossibilidade da manutenção do eu ideal temos a necessidade de substituí-lo por um paliativo. A castração, como sabemos, é o elemento doloroso e fundamental do complexo de Édipo. Através dela a criança abandona a posição do eu ideal, onde se encontra de posse de toda a perfeição necessária para ser um objeto completo para a mãe, trocando-a, de boa ou má vontade, pelo ideal de eu. Mas o sujeito jamais se consola por essa perda e procura, por caminhos substitutivos, a retomada do que foi perdido.
Sabemos que as pulsões sofrem a vicissitude da repressão quando entram em conflito com os valores éticos e morais do indivíduo. Poderíamos dizer que o sujeito renuncia ao pulsional pelo amor do outro – já que é na relação com o outro que se constitui – e seria essa uma das principais fontes de conflito. Constrói-se aí o amor ao outro que é, se levarmos em conta o narcisismo, uma espécie de amor por si mesmo, na medida em que percebemos, logo cedo, essa dependência. A renúncia não é opcional, pois tratamos aqui do animal humano, a quem coube a característica de representar, de pensar sobre si e sobre seus próprios pensamentos. São as ideias, constitutivas do ego, que lhe fariam exigências e produziriam a repressão, egóica, portanto. Significa que o indivíduo fixou um ideal para si próprio e seria esse o fator relevante para que a repressão fosse instaurada. Esse modelo, a que chama ideal de eu, torna-se alvo do amor a si próprio e desloca, agora em sua própria direção, o narcisismo infantil, remodelado. É através dele que o indivíduo partirá em busca da restauração do ego infantil já que, na infância, o ego revestia-se de uma perfeição que o indivíduo reluta em entender que jamais voltará a ter. Entra aí o ideal de eu, que pode ser considerado mais ou menos como um projeto de recuperação. Seu ideal projetado surge com o encargo de substituir a perfeição do narcisismo perdido na infância, onde ele próprio era seu ideal. Esse ideal perdido refere-se já à relação com o outro, na medida em que é o casal parental, com seu olhar de deslumbramento, que produz a sensação de perfeição inicial.
Impulsionados pelo ideal de eu tentamos desenvolver e manter valores elevados que fazem a diferença entre a convivência animal pura e simples e aquela que entendemos como convivência humana. Caso não houvesse a castração, ou fosse mantido o eu ideal não haveria possibilidade de sociedade e cultura.
Desde a “Introdução ao Narcisismo” (FREUD, 1914/1996) percebemos o estabelecimento de uma diferença entre sublimação e idealização, que não se altera muito ao longo da obra. É a delimitação que estabelece nesse texto entre o eu ideal e o ideal de eu, que nos permite compreender o conceito de idealização. Apóia-se para isso no conceito de repressão: “A repressão, já dissemos, parte do eu. Poderíamos precisar: do respeito do eu por si mesmo (Selbstachtung)”. (FREUD, 1914/1996, pág. 90).
A comparação que vai se estabelecer entre o ideal de eu e o eu real, visa satisfazer o narcisismo de algum modo e constitui uma espécie de instância interior de regulação capaz de determinar a autoestima que, por sua vez, depende da libido narcisista.
A distinção entre ideal de eu e superego, presente em alguns trabalhos de Freud foi retomada e valorizada por Lacan. Menciona explicitamente – como uma importante consequência dessa distinção – que o superego não pode ser identificado à consciência moral. Freud propõe inicialmente duas funções diferenciadas do superego: a auto-observação, como uma atividade preliminar necessária ao julgamento, e o julgamento moral propriamente dito. A seguir acrescenta ainda uma terceira função do superego: a de ser o veículo do ideal de eu, ao qual o eu se compara.
Freud descreve a sublimação como “um processo que diz respeito à libido e consiste no fato de a pulsão se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse processo, a tônica recai na deflexão da sexualidade” (FREUD, 1914/1996, pág. 101 corrigido) enquanto a idealização é descrita como “um processo que diz respeito ao objeto; por ela, esse objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, é engrandecido e exaltado na mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido do ego quanto na da libido objetal. Por exemplo, a supervalorização sexual de um objeto é uma idealização do mesmo” (FREUD, 1914/1996, pág.101 ).
Tendo em vista todos esses pontos podemos supor que, para que o ideal de eu possa se manter e desenvolver, é necessário, digamos assim, um contexto correlato, como uma espécie de universo paralelo à realidade subjetivamente percebida. Podemos imaginar que, da mesma forma que o ego, esse universo também se desenvolva na trama das relações com os objetos ou que tem contato e informações provenientes do mundo exterior (educação, cultura, ciência, arte, moral, ética). As escolhas serão feitas no sentido de que apenas aquilo que preenche requisitos de certa perfeição pode integrar um ideal. Esse seria o habitat adequado ao ideal de eu e vamos chama-lo de ideal de mundo que, para estar completo, deve ser povoado e habitado por ideais de outro. Descrito desse modo pode parecer bizarro e disparatado esse pretenso mundo, mas creio que, sem ele, não nos seria possível prosseguir em direção a algo, investindo libido.
A arte renascentista, com suas paisagens e corpos perfeitos, com seus ideais platônicos, é um bom exemplo da tentativa de construção de um desses sonhados mundos. Poderíamos tomar ainda os mais variados arquétipos – tanto do bem quanto do mal absoluto – para ilustrar essa ideia, que estão amplamente distribuídos pela literatura, ciência e política. Maquiavel (2012), considerado o fundador da ciência política, é um bom exemplo do ideal invertido. Enfoca a natureza humana em todo seu esplendor e mesquinhez, despreza a visão “amaciadora” propiciada pelos ideais de eu e ideais de outro, e se atém ao humano tal e qual é, tal e qual age em relação aos semelhantes quando tem alguma forma de usar a força a seu favor. Toma o humano tal como podemos vê-lo através da história da humanidade em sua incessante luta pelo poder. O desconforto que gera a visão de Maquiavel (2012) é equiparável ao que produz a criança do conto de fadas ao gritar “O rei está nu!”. Faz com que nos sintamos nus com todo o despudor que exibiríamos se nos despíssemos de nossos ideais de eu.
Maquiavel (2012) trabalha o desejo cru, preocupado apenas em criar instruções minuciosas, didáticas e realistas para um príncipe, também humano e real, para que atinja seus objetivos de conquista. Estamos acostumados a discursos onde toda ação de conquista e domínio vem enfeitada pelos brilhantes das intenções mais elevadas. Acabamos acreditando que existe uma crueldade justa! Não é esse, de fato, o caminho de Maquiavel (2012, s/p.), quando discorre sobre crueldades bem e mal usadas:
“Poderia alguém ficar em dúvida sobre a razão por que Agátocles e algum outro a ele semelhante, após tantas traições e crueldades, puderam viver longamente, sem perigo, dentro de sua pátria e, ainda, defender-se dos inimigos externos sem que os seus concidadãos contra eles tivessem conspirado, tanto mais notando-se que muitos outros não conseguiram manter o Estado, mediante a crueldade, nos tempos pacíficos e, muito menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que isto resulte das crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-se dizer serem aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem instantaneamente pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não se insiste, mas sim se as transforma no máximo possível de utilidade para os súditos; mal usadas são aquelas que, mesmo poucas a princípio, com o decorrer do tempo aumentam ao invés de se extinguirem. Aqueles que observam o primeiro modo de agir, podem remediar sua situação com apoio de Deus e dos homens, como ocorreu com Agátocles; aos outros torna-se impossível a continuidade no poder.
Por isso é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios. Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança diante das novas e contínuas injúrias. Portanto, as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam melhor apreciados. “
Teríamos uma razoável dificuldade em confiar ou mesmo aceitar a proteção de alguém que se baseasse nesses princípios. Desejamos alguém que, vestido de grande pai, diga-nos que se sacrifica ao assumir o poder para proteger os interesses da coletividade. A crueldade, caso apareça, deve ser razão para que esse líder se entristeça. Mais que isso, espera-se que ele possa justificá-la como inevitável.
Contrapomos constantemente nosso ideal de mundo ao mundo real e nos damos conta do quanto falta para alcançarmos a felicidade. Somos obrigados assim a considerar que, além do ideal de eu, temos também um ideal de outro, um ideal de comunidade e muitos outros modelos ideais. Retornando Bauman (2003 a, p.09), “é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance – mas no qual gostaríamos de viver e que todos esperamos vir a possuir”. Quando constatamos que o ideal de mundo não corresponde ao mundo real, não pensamos em desistir dele. Acreditamos sempre que ainda não o temos por responsabilidade de um outro, quer seja ele o líder falho, o parceiro egoísta, o pai incompreensivo, que nos priva do paraíso por não corresponder ao ideal.
Isso nos leva ao nosso próximo problema: a diferença existente entre as concepções subjetivas, ou seja, entre a comunidade de nossos sonhos, a comunidade do sonho dos outros e a comunidade realmente possível. Esta última nos interessa porque se configura a partir de nossas experiências reais de comunidade.
Suponhamos que tivéssemos a nosso alcance a comunidade sonhada. Manter sua harmonia exigiria dos participantes e de nós mesmos, uma rigorosa obediência a certas normas. Para nos adequarmos aos conceitos de confiabilidade exigidos pelo grupo isso deveríamos abrir mão de boa parcela de nossa liberdade. Caso nós mesmos houvéssemos criado a comunidade e suas regras, exigiríamos subordinação semelhante dos ingressantes. Qualquer que seja a escolha ganhamos uma coisa e perdemos outra. A comunidade ideal de um dado sujeito seria aquela em que pudesse concordar com todas as regras sem estar perdendo nada de relevante, ou seja, aquela que se baseasse em sua própria vontade. Como não há duas concepções idênticas de mundo ou de regras aceitáveis, essa comunidade seria baseada no ideal de eu e povoada por ideais de outro, o que é, no mínimo, improvável. Assim, ou perdemos nossa própria liberdade – enquanto integrantes comuns – ou cerceamos a liberdade dos que se opuserem à nossa vontade – enquanto líderes.
Segurança e liberdade são dois valores preciosos e desejados, mas não se encontrou formas ainda de ajustar ambos sem conflito, diz Bauman (2003 a). Nossos desejos mais caros são infantis e narcísicos. Desejamos nos sobrepormos e sobressair em relação aos demais, deter sempre a palavra final e receber aprovação incondicionalmente. Talvez por isso mesmo a história acumule enorme número de fatos concretos que, por si, poderiam levar à descrença nas sociedades igualitárias e em qualquer projeto de harmonia perfeita. Podemos pensar, tal como Freud aponta em “O Futuro de uma Ilusão” (1927/1996, pág.16) que “Fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção.”
O próprio Freud, no mesmo texto, observa que seria necessário um reordenamento das relações humanas que removesse as fontes de insatisfação para com a civilização., principalmente as da renúncia, da coerção e repressão pulsional. Talvez assim, livres da discórdia interna, os homens pudessem usufruir dos benefícios do conforto que a civilização proporciona. Mas é exatamente sobre a renúncia e repressão pulsional que se ergue toda a civilização, já que o homem traz em si, em maior ou menor dose, tendências destrutivas e antissociais que podem determinar seu comportamento nas sociedades humanas e mesmo ameaçá-las.
Seria importante, neste ponto, diferenciar ao que nos referimos ao falar sobre as tendências destrutivas atreladas ao sexual. Afinal, é a sublimação da pulsão sexual que leva à melhor produção da cultura, como a arte e a ciência, o que significa que a destrutividade não é o único caminho. Exatamente por não conseguir admitir que, por sua própria natureza cheia de agressividade, por suas dificuldades em renunciar a algo pelo bem de todos (coisa que não faz, mas exige dos demais) é o próprio homem o empecilho a uma convivência harmoniosa. Por isso mesmo recobre-se, com um poderoso ideal de eu. Se desistisse de seus ideais de mundo o homem abriria mão daquela parte de si que lhe torna possível aceitar, ainda que de má vontade e à custa de alguma neurose, as interdições necessárias à manutenção da cultura.
Os planejamentos teóricos das sociedades igualitárias partem do princípio que todo o mal reside na distribuição desigual de riquezas. É como se o bem-estar material fornecesse motivação suficiente para compensar o que se perde na renúncia à satisfação pulsional. Mas a distribuição não é igualitária porque a natureza humana não é, por si, generosa. Não é por acaso que o caminho natural levou a humanidade do feudalismo – sistema baseado em absoluta desigualdade e exploração – e posteriormente ao capitalismo, onde cada um busca, a seu modo, adquirir, conservar e multiplicar bens para si próprio e seus descendentes.
Outra questão que tange às diferenças é que nenhuma sociedade pode se constituir sem alguma espécie de líder ou de ordenação. Há sempre alguém ou um grupo coordenando a produção e distribuição de alimentos ou tentando evitar que se estabeleça uma destrutividade desenfreada. Freud aponta que o ser humano não é naturalmente amante do trabalho e que nenhuma argumentação consegue refrear as paixões. Justifica por isso certo grau de coerção para que a sociedade possa manter-se. Admitindo que o anarquismo não seja um tipo de projeto viável resta ainda responder à pergunta crucial: onde obter, se é que existem, líderes de uma tal natureza que seu exemplo – em aceitar e impor a si mesmo a limitação pedida pela civilização – possa guiar os demais?
Algo que merece uma reflexão quando pensamos porque as sociedades que se propuseram ao socialismo fracassaram, é o fato de que não levaram em conta o sujeito humano que constituiria sua matéria prima essencial. Não seria possível, por outro lado, pensar em uma sociedade com ausência total de dominação, porque isso nos faria novamente voltar à indiferenciação. De um ponto de vista freudiano essa diferenciação, que resulta em naturezas com diferentes inclinações, começa a operar desde o primeiro contato com o mundo. Assim, não seria possível pensar operacionalmente em sujeitos com desejos idênticos e idênticas formas de manifestá-los.
As dificuldades à renúncia
Frustração é o que resulta quando não é possível que uma pulsão seja satisfeita, enquanto a proibição seria a regra que estabelece essa frustração. O resultado final seria a privação. É evidente que as privações não afetam a todos da mesma forma. Os desejos pulsionais mais fundamentais, que foram alvo das mais antigas proibições, separando o homem de sua condição animal inicial – o canibalismo, o incesto e a ânsia de matar – recebem tratamento semelhante nas sociedades de que se tem notícia. Excetuando-se o canibalismo, chama a atenção que os outros dois sigam vigentes pelo número de proibições ainda existentes para desestimulá-los. Mas a condição exclusiva do homem socializado permite que uma coerção interna passe a atuar a partir de dentro, através do superego. Se pudéssemos medir coisas imensuráveis seria possível pensarmos nas diferentes dimensões dos superegos de cada sujeito individualmente. Acabaríamos notando uma gama provavelmente extensa de adesões maiores, menores e mesmo nulas às regras impostas à satisfação pulsional. De qualquer modo é apenas através da formação do superego que uma criança termina por transformar-se em alguém apto a viver em civilização, realizando suas regras éticas, estéticas, morais e sociais.
Os graus de privação a que se veem submetidos determinados grupos também determinam, de certa forma, sua atuação. O sujeito que, como na China de Mao, começava a ser indiferenciado pela própria roupa, precisava logo de início abrir mão de parte de sua identidade. Era obrigado a adotar a convicção de que, para pertencer a essa comunidade ideal, deveria desistir do que Nietzsche (1887/2011) chamava de vontade de potência e que em Freud podemos chamar de desejo. Se a prevalência do narcisismo não parece uma boa ideia para um grupo submetido a um tirano, a total ausência de possibilidades de diferenciar-se parece igualmente sem atrativos. Cessam os estímulos, a criatividade, as possibilidades mesmas de sublimação. É o céu aborrecido de que nos fala Schopenhauer (ano da 1ª edição/2012, s/pág): se a serenidade da pura contemplação pode representar a ausência de angústia, indica igualmente a inexistência de qualquer prazer.
Conclusão
O pensamento do tronco judaico-cristão, no qual estamos situados, prega uma postura de que os bons devem ser fracos, impotentes, pobres de espírito. O orgulho de si, a potência, a insubordinação à submissão, o desejo de crescimento, aproximam-se do mal. O mal é aquele que luta, reivindica, constrói, realiza, ou seja, é aquele que deseja. Isso nos prende quase fatalmente a uma moral do ressentimento. Devemos sofrer aqui e aguardar pela compensação, que é também a vingança que nos foi prometida. Deus nos prometeu que, sofrendo sem revolta, herdaríamos o céu. E o pior é que nem sequer poderemos aproveitar, já que só podemos apreciar aquilo que possuímos ou sentimos em oposição à falta ou ao excesso. Não se pode gozar férias sem trabalho nem o prato requintado sem fome.
Pensar que se esteja de fato concluindo qualquer coisa sobre uma questão que engloba tão grande número de variáveis seria pura temeridade. Afinal, as visões de Inferno e paraíso se sobrepõem, dentro e fora de nós, repetindo o conflito entre as exigências pulsionais e as normas da cultura, entre criatividade e destrutividade, entre Eros e Thanatos.
Parece-me absurdo que boa parte da humanidade ainda se divida entre duas possibilidades quase exclusivas – capitalismo e socialismo – como se somente assim pudéssemos opor o mal ao bem em territórios delimitados. O capitalismo, por ser injusto e promovedor de miséria, o socialismo por trazer, não na teoria, mas na prática, as sementes da mesma desigualdade, não parecem defensáveis. Mas os defensores de cada um consomem todas as suas energias em críticas ao lado oposto e não conseguem pensar, por exemplo, num terceiro caminho, que talvez representasse uma saída mais promissora.
Não há como pensar uma saída sem pensar nos sujeitos que integrarão cada sociedade. Não se pode desprezar o fato de que a humanidade não é composta por sujeitos inocentes e humildes, despidos de desejo à espera de um olhar magnânimo e paternal. Pensar um novo caminho significa pensar o esse sujeito individual que, na clínica, é analisando ou analista, no mundo, cidadão, em suas limitações e suas possibilidades. Maquiavel (1513/2012), quando toma o homem visto sem o filtro dos ideais, traz à tona a realidade do narcisismo e do egoísmo com os quais temos que nos defrontar, não como patológicos, mas como dados a serem seriamente considerados. Trata das questões que realmente norteiam aqueles que buscam o poder, mostrando que o próprio desejo de comandar oculta intenções muito diferentes do paternalismo e o desejo de promover o bem-estar da comunidade. Alerta também para o fato de que o aspirante ao poder precisa revestir seu discurso, de algum modo, com a bondade e a sabedoria porque os dominados esperam que sejam sua verdadeira motivação. É preciso assinalar que ele, ao contrário de Freud e outros pensadores, vê nisso a natureza imutável do humano e não propriamente um problema. Para analisar sua posição entraríamos no campo da ética e da moral, que nos parece bastante escorregadio, correndo o risco de dar à reflexão um tom maniqueísta em tempos onde o bem e o mal precisam ser profundamente questionados.
A ciência, um dos elementos que fortaleceria o Deus de prótese de que fala Freud, veio apenas em benefício de alguns. Apenas uma pequena e privilegiada elite tem acesso aos processos de cura mais avançados, à tecnologia e ao bem-estar que ela pode oferecer. Por outro lado, a própria ciência contribui para a criação de mercadorias que, em última instância, pelo número de recursos naturais que solicita, encaminha o planeta ao sucateamento. O homem só consegue pensar a curto prazo, ou seja, no seu prazo de permanência sobre a Terra, e não consegue se preocupar com os que virão no futuro e terão que arcar com as consequências de seus atos.
O que se pode constatar, portanto, é que tanto no capitalismo quanto em outros sistemas o que prevalece é o privilégio de poucos em detrimento da liberdade e da satisfação das necessidades dos demais. O grupo que atinge o poder, de uma forma ou de outra, sempre achará justificada essa escandalosa diferença. A satisfação das necessidades essenciais é, certamente, um dos pontos a se pensar para que haja condições dignas de vida, mas isso está longe de ser o suficiente, já que certo narcisismo, certa agressividade e o próprio desejo pedem espaço. A coerção, do mesmo modo, jamais deixará de ser necessária, desde que não aniquile as diferenças.
O ideal de eu, o ideal de mundo e o ideal de outro, formam uma configuração que dificulta a visualização de caminhos viáveis para novas formas de convivência entre indivíduos. Paradoxalmente, sem eles, não poderíamos dizer que o novo caminho traria algum acréscimo às construções que conduzem à solidariedade e à renúncia.
Lembro-me de um documentário que falava sobre o quanto, ainda hoje, despendem-se recursos em suntuosas festas a fantasia e, de uma delas em particular, em que se acompanhavam os convidados desde a sua entrada. Impressionou-me uma linda mulher, que ao entrar capturou todos os olhares. Parecia a materialização das mais belas visões da arte sobre a feminilidade. Vestia com um rico traje bordado e sustentava por uma haste, sobre o rosto, uma belíssima máscara veneziana que lhe dava tantos rostos quantos se pudesse sonhar, todos perfeitos. Deslizava prendendo os olhares e agradecendo os cumprimentos com a graça de uma ninfa. Ao aproximar-se da anfitriã, no entanto, foi preciso que baixasse a máscara. Desfez-se o encanto, quebrou-se abruptamente a magia. Tratava-se de uma mulher já madura e muito distante dos padrões de beleza cultuados. Os olhares imediatamente criaram uma turbulência que sinalizava a quebra do fascínio e subitamente seus ombros baixaram, curvou-se o torso, endureceram-se os gestos. O andar tornou-se rígido e titubeante.
Como a máscara de beleza absoluta, nosso ideal de eu nos faz sentir dignos da perfeição a que aspiramos. Leva-nos ao menos a acreditar que, por algum artifício ou sacrifício pessoal atingiremos, um dia, aquilo que imaginamos ou desejamos ser. Desejamos, na verdade, ser ao menos um pálido reflexo do que fomos naquele breve e mágico período onde um olhar deslumbrado nos conferia completude e majestade. O que aspiramos como signo de perfeição equivale também ao que gostaríamos de ver no outro idealizado – a mãe primeva, para sempre perdida – que povoaria o ideal de mundo onde, finalmente, encontraríamos a felicidade e exorcizaríamos o monstro ancestral do desamparo. É a promessa do paraíso cristão: os maus serão eliminados e punidos enquanto os bons, triunfantes, habitarão acompanhados de seus pares a monotonia paradisíaca.
Apesar da máscara como metáfora, a busca de uma melhor solução para a equação sujeito-cultura nada tem a ver com “desmascarar” o humano. Sem a possibilidade de alimentar ideais deixaríamos de buscar de soluções mais adequadas e humanas. Claro que a ideia de perfeição será sempre ilusória, por tratar-se de enfoque individual, dependente de fatores variados e, como tudo aquilo que é humano, não coincidir quando analisada de sujeito a sujeito. Podemos dizer que, tal como existem “narcisismos”, existem “perfeições” e seu formato é moldado no percurso de cada sujeito. É preciso que o ideal de mundo permaneça para que nos aventuremos a tentar fazer mudanças, com toda delícia e a imensa dor que isso implica.
Freud reconhece que, devido à diferenciada e complicada situação do humano, principalmente diante de seu desamparo, a ciência de um modo geral e a psicanálise em particular nada podem oferecer que se equipare ao que é oferecido pelas religiões e, poderíamos acrescentar, pelos mundos idealizados.
Entre as diversas tentativas de construção de mundos ideais, há também aqueles que pregam uma espécie de retorno à natureza. Mas o homem só existe enquanto tal dentro da cultura e o mal-estar é o preço pago para que viva nela, reprimindo a agressividade e a sexualidade. A cultura é a convivência baseada em determinado grau de repressão, onde se renuncia à satisfação pulsional desenfreada pela própria sobrevivência e pelo amor do outro. Essa é, aliás, uma frase redundante, porque na relação com o outro reside nossa única chance de sobrevivência. Podemos dizer, portanto que a existência humana nada tem de “natural”, estritamente falando, e que esse mal-estar jamais será eliminado, seja qual for o rumo que tomem as organizações sociais. A agressividade, como bem aponta Freud, não foi criada pela propriedade.
Quando Freud nos fala das “disposições pulsionais variadas” somos levados a pensar nos imprevisíveis meandros que constituem os percursos individuais do nascimento à morte. São infinitas as possibilidades de arranjos entre as potencialidades que trazemos em um corpo biológico e a sucessão de eventos que o transformarão em corpo erógeno. Arranjo é termo mais adequado que combinação porque até mesmo a ordem temporal em que ocorrem atua como variável, dado que o ego é construído na relação com o outro ao longo do percurso. São esses meandros e arranjos únicos que constituirão os sujeitos igualmente únicos pensados pela teoria psicanalítica.
Mudar não significa abandonar a máscara segundo a qual pretendemos ou temos o desejo de nos modelar, essa que incorpora todos os valores que nos são mais caros, mas tomar consciência da distância entre a máscara e a face verdadeira. Esse grapho, trama escultórica de associações particulares e únicas, determinará se estão mais próximas da argila ou do granito, as dificuldades com que se vai confrontar nessa transição.
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Cristina Mega