Lentes são deformadores ou retificadores que adquirimos através da vida. Podem não apenas alterar, mas constituir a realidade de cada um. As que trazemos da infância são as mais perigosas porque dificilmente as percebemos. Com elas pode vir tanto o time do coração quanto o horror ao futebol. Outras chegam com o tempo, fruto de buscas ou de inércia. São lentes que enviesam o olhar, que enquanto nos abrem horizontes de um lado fecham-nos de outro. A lente da psicanálise fechou-me o das crenças religiosas, a da política tirou-me a ingenuidade de esperar por alguém que queira governar buscando algo mais que o poder ou a glória. Mas ao contrário do que se pensa, a ausência de crenças é bastante apaziguadora para aquela que, tendo sido alma, transformou-se em psiquismo, prensada a frio na mó dos aprendizados.
A pós-modernidade, onde tudo que nos permitia sonhar e criar utopias foi praticamente destruído, produz queixas ressentidas, decepcionadas, onde se apregoa que a humanidade não tem jeito, que não deu certo. Mas não deu certo em relação a que? Não há solidariedade, as guerras e polarizações se multiplicam. Mas quem a compara assim a uma “humanidade ideal” tende a consumir soluções baratas nas lojas de um e noventa e nove das quase filosofias. Ou a criá-las, o que rende um bom dinheiro.
A empatia e a solidariedade, não são o que distingue o humano em geral. São sentimentos que devem ser implantados a duras penas. E implantes, sejam eles de dentes, seios ou sentimentos, são sempre artificiais e causam reações autoimunes na maioria das vezes. É claro que, sem esses implantes, a vida em sociedade seria ainda mais difícil. Mesmo a tentativa de implante no geral é falha. No geral conseguimos quando muito agir “como se” fôssemos solidários e empáticos. Mas em épocas como a que vivemos isso também é dispensável e o contrário chega a ser até mesmo louvável.
Ainda assim o ser humano precisa sonhar com um mundo diferente daquele em que vive, mundo que descreve deliciado, em detalhes, como quem descreve as cintilações furta-cor nas pestanas de um unicórnio. Mas as descrições não coincidem jamais. A felicidade tem uma concepção particular para cada um. Um identifica o mundo do outro, em sua diferença, como o que impede a existência do seu. “Bastaria que quiséssemos a mesma coisa, mas você não quer e priva o mundo de todo o bem, de toda a harmonia”. Assim, a destruição do mundo do outro torna-se condição de construção do meu próprio. Nisso estão as raízes das guerras religiosas, ideológicas e quaisquer outras que impliquem em diferenças de concepção mais ou menos antagônicas.
Parte dos humanos publicam nas redes cenas em que um leão ou o urso abraçam uma garotinha e deixam-se acariciar, em que um enorme tigre brinca mansamente com um coelhinho macio. Emocionam-se com a farsa que criam ao recortar situações bastante atípicas e tentar generalizá-las. Pregam comovidos essa pieguice de que os animais são mais humanos que nós. Basta um deslize, uma pequena falha e o animal volta, recupera sua natureza que, diga-se, nada tem de cruel. De forma prática e tranquila, reconhece que o amigo temporário está em seu cardápio e saboreia-o sem culpa. A culpa, essa sim, é exclusivamente humana, mas tão prótese quanto outros sentimentos.
Yuval Harari, ao apresentar no livro Sapiens o resultado de seu extenso estudo sobre a humanidade, argumenta que o Homo sapiens dominou o mundo por ser um animal único, capaz de formar grandes grupos de cooperação. Consegue essa proeza por outra característica única que é a de criar coisas e entidades que não existem, acreditar nelas e estender suas crenças a grandes grupos. São produtos da pura imaginação, como deuses, nações, dinheiro e direitos humanos. Isso faz dessas religiões, estruturas políticas, mercados e instituições legais, em última instância, apenas ficção. Mas ficções que movem o mundo, provocam tanto laços quanto guerras. Usaram, basicamente, toda essa criatividade para exterminar todos os outros hominídeos.
Freud dizia que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas. São criaturas constituídas por elevado percentual de agressividade, para quem o outro frequentemente é apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém a quem podem explorar, escravizar, roubar e matar. E é o que fazem constantemente apoiados em morais escolhidas em religiões de conveniência regidas por Deuses pré-pagos e voláteis. Nenhum outro animal em toda a Terra estupra os filhotes de sua própria espécie. Essa coisa brutal que muitas vezes leva à morte a própria prole, é exclusivamente humana.
O ser humano é um ser do desejo e não da necessidade, essa foi uma das grandes falhas do socialismo real. São seres que não só criam utopias, mas sonham e se espelham nelas.
Coisa que muito me diverte são as falas que descrevem o verdadeiro amigo.
“Um verdadeiro amigo é aquele que entra quando o resto do mundo sai. Alguém que te conhece tal exatamente como você é, te compreende te acompanha nos sucessos e fracassos, celebra tuas alegrias. Um amigo verdadeiro permanece ao seu lado mesmo quando você está errado, sem te julgar. No lugar de falar da própria vida pergunta o que há de novo sobre você.”
Um verdadeiro amigo, em suma, não é aquele que eu pretendo ser, mas o que eu pretendo que o outro seja.
Mas sim, houve uma falha. Uma enorme falha. Essa falha está no arquétipo inviável que o ser humano construiu para seu próprio modelo. Um humano bondoso, generoso, russoniano, que jamais existiu. Dizer que falhou é uma forma de não se reconhecer no que há de pior. E como cada um de nós sabe-se, no íntimo, invejoso, cruel e egoísta, resta-nos votar no bom tirano esperando que ele seja o que jamais seremos e restaure o humano ficcional em cuja construção falhamos miseravelmente.