Do que é feito o sonho?

Todo ser humano em algum momento teve aquele instante de intrigante fascínio por um sonho ao acordar. Como se forma essa trama, quem é esse roteirista e esse cenógrafo que agem tão rápido? Como são criados diálogos e compostos grupos de pessoas que acreditamos jamais ter visto?

Percebendo sua estreita conexão com os problemas apresentados pelos pacientes que os relatavam Freud começa a reparar na importância do sonho. No episódio da morte do próprio pai, Freud inicia o que poderia ser encarado como uma autoanálise, utilizando como material os próprios sonhos. Não eram desprezíveis os conflitos que Freud vivia em relação ao pai, homem correto, sério, que a despeito disso havia decepcionado Freud por não reagir com a devida força às ofensas que recebia dos não-judeus na Viena de uma época que comportava fortes núcleos de antissemitismo. Foi através da detecção de como esses conflitos apareciam fundidos e mascarados nos intrincados enredos dos seus próprios sonhos que Freud se volta para eles. Estudando a maneira como esse enredo, a que nomeia trabalho do sonho, se constitui, chega aos cinco mecanismos-elementos principais: a condensação, o deslocamento, a figurabilidade, a elaboração secundária e os afetos, elementos fundamentais da construção dos sonhos propriamente ditos.

Para Freud o sonho traz, invariavelmente, uma mensagem e, ao assumir isso, rompe com a leitura que a ciência fazia desse fenômeno. A ciência parte do princípio de que o sonho não tem sujeito – vem do nada e ao nada retorna – manifestação epifenomênica de um certo estado do sistema nervoso. Freud afirmaria que o sonho se refere ao sonhante, que é seu sujeito e que algo apartado, isolado, se ressimboliza no sonho.

Uma parte do sonho se compõe de um conteúdo manifesto que encobre (embora se possa dizer que também tenta mostrar) os pensamentos latentes. Freud compara isso às charadas, onde as imagens têm que ser decodificadas, já que constata a existência de regras para que as ideias latentes, produtos do recalque e da defesa, se transformem no conteúdo manifesto. Essas ideias não têm como se manifestar de maneira direta. A gramática para que uma coisa seja transformada em outra é a gramática do disfarce, mas um disfarce que desfruta o dom de indicar o caminho da revelação, de tal forma que se pode dizer que todo recalque, toda defesa, são destinados ao fracasso.

O sono é uma maneira de o sujeito recolher temporariamente para si os investimentos postos no mundo exterior. As ideias latentes, que mais não são que coisas recalcadas, defendidas, atos não realizados, de forma automática, movidas pelas cargas, animadas pela pulsão, querem a todo custo emergir, permitir ao sujeito algum tipo de satisfação. O sonho é tido como guardião do sono na medida em que transforma essas ideias latentes, altamente carregadas de cargas inespecíficas, que almejam simplesmente sair, em algo que pode aparecer no conteúdo manifesto. Ainda que estejamos adormecidos essas ideias continuam a constituir a face daquilo que não podemos saber. Disfarçadas, transitam pelo grande enredo com a máscara do conteúdo manifesto. Nesse jogo a regra fundamental é a formação de compromisso, através da qual algo que o sujeito não deseja saber a seu respeito é admitido na consciência desde que venha misturado e disfarçado das coisas de que já se encontravam na consciência. O sonho é, normalmente, muito menor que suas ideias latentes e tem a mesma estrutura do sintoma, portador a mesma a ideia de formação de compromisso.
Descobrimos encantados que cada um dos lugares que vimos, seja pessoalmente, em filmes ou imagens, todas as pessoas que conhecemos ou vimos em filmes, tudo que enfim vivemos e nos marcou, permanece num grande bastidor de onde se escolhem as montagens que movimentam os sonhos a cada noite.

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