A cada ano aumenta mais o número de pessoas diagnosticadas com algum tipo de transtorno mental. Depressão, bipolaridade, TDAH, Síndrome de Burnout, Transtorno de ansiedade Generalizada. Os nomes não acabam por aí e multiplicam-se a cada dia. Proporcionalmente surgem medicamentos psiquiátricos que se pretendem específicos. Sabia-se, até algumas décadas atrás, que o sofrimento e a alegria são parte da vida de qualquer um e não representam patologia. Mas a partir de certo momento qualquer tipo de sofrimento tornou-se inaceitável, qualquer comportamento dissonante patológico.
Para Foucault houve uma virada no século XIX a que ele chamou “assunção da vida pelo poder”. Foi o movimento que estabeleceu poder sobre o homem enquanto ser vivo, estatizou o que seria biológico.Foi nesse século que o mundo ocidental sofreu uma grande inversão no modo como se exercia o poder. O direito político foi mudado e de certo modo invertido. Ainda conforme Foucault, temos, desde então, o direito de “fazer viver e deixar morrer”. Foi uma mudança que ocorreu gradativamente a partir dos séculos anteriores e cujo intuito era controlar a localização dos indivíduos, agrupá-los ou separá-los, controlá-los. Esses corpos deviam também ser treinados e moldados de forma a se tornarem mais úteis para a produtividade no trabalho.
Com o tipo de sociedade que temos atualmente, feito de núcleos familiares fechados, enorme competitividade e um individualismo crescente seria considerado normal que a solidão, a tristeza e outras formas de sofrimento fossem considerados normais. O movimento de medicalização da vida vai exatamente transformar um sofrimento que é coletivo em um tipo de problema individual com um nome específico. As reações normais às perdas, medos, incertezas são considerados problemas médicos e, como tais, medicados.
Um caso gritante é o das crianças em idade escolar. Uma criança que não funcione segundo padrões é rapidamente diagnosticada com TDAH e medicada com Ritalina. Quando as crianças podiam correr na rua, gastar energia a vontade, eram encaradas de forma diferente do momento em que começaram a ter que gastar sua energia em apartamentos, enlouquecendo os pais que desejam sossego ou têm tarefas a fazer. Ás vezes a questão está em pais que não impõem quaisquer limites aos filhos e, de repente, querem que eles encarem naturalmente a necessidade de estudar e prestar atenção a aulas. Outras vezes o problema é com política educacional ou projeto pedagógico da escola. Mas é muito mais confortável transformar isso em problema pessoal a ser resolvido com medicação.
Sentimentos como os momentos de tristeza e períodos de luto, estão sendo diagnosticados como depressão. A agressividade, a preguiça, a arrogância, parece que qualquer tipo de comportamento corresponde a um diagnóstico. Um sujeito que comete um assassinato ou atrocidade é imediatamente considerado psicótico ou perverso, o que nos impede de admitir esse tipo de comportamento como humano e nos protege quando nos julgamos entre os “normais”. Tenho recebido pacientes que, sem qualquer patologia, começaram a ser medicados em algum momento, receberam um diagnóstico equivocado e, depois de anos, começam a sentir os efeitos maléficos desses medicamentos que mais matam do que ajudam e que são muito difíceis de abandonar. O que deveria ser temporário torna-se permanente e o que seria tratamento torna-se vício.