Casamento e sexo, o grande paradoxo

Não é fácil definir exatamente o que nos atrai em nosso par amoroso, ou o que nos atrai eventualmente em alguém. É comum dar o nome de química a esse conjunto invisível que aciona nosso interesse. Alguns dizem que o fundamental é a inteligência, outros a integridade, ou o talento, mas para que a relação vá além do fraterno, para que o corpo e a emoção sejam também acionados, é preciso que haja algo além disso. Mais ainda, é preciso que esse algo mais ocorra em ambos os lados. O número diário de casamentos nos diz que, embora não seja exatamente fácil, ocorre um bom número de vezes.

          O início é um período maravilhoso, os apaixonados se empenham em encantar-se com elogios, flores, presentinhos, surpresas e jantares. As afinidades surgem a cada momento, fala-se em destino enquanto o envolvimento proporciona um sexo fantástico. O amor parece infinito e é tão grande a sensação de completude que os apaixonados chegam a sentir-se como se houvessem se tornado um. Costumo dizer que essa fase deliciosa é uma espécie de brigadeiro que a vida nos oferece. É o período de romantismo e pura festa da relação. Mas nós humanos, todos sabemos, não fomos feitos para viver de brigadeiros. Se insistíssemos terminaríamos gordos e anêmicos, o que não chega a ser um consolo. Além disso, como o brigadeiro fica reservado apenas ao início dos relacionamentos, teríamos que viver em uma eterna troca de parceiros.

          Nessa fase somos extremamente compreensivos e doces em relação às diferenças e mesmo aos defeitos – até os mais ou menos incômodos – do parceiro. É também um momento em que somos mais generosos e não hesitamos em renomear alguns, dando-lhes uma temporária camuflagem que os faz bem mais aceitáveis. Se a pessoa escolhida é excessivamente ciumenta e controladora dizemos que é apenas insegura; se é dada a grosserias dizemos que é uma pessoa verdadeira, sem hipocrisias; se exibe graves falhas intelectuais é renomeada como “autêntica”; um parceiro sem ambição e pouca tendência ao trabalho transforma-se em alguém que “não quer se submeter ao sistema”; se tem maus modos à mesa dizemos que é uma pessoa simples, contra esnobismos e assim por diante. Para esse esforço de renomeação, contamos com a parceria de uma das mais poderosas forças que operam sobre os humanos, uma espécie de chantilly que costuma recobrir tudo o que seria inaceitável no ser amado, uma força capaz de transformar sapos e sapas em príncipes e princesinhas, a famosa libido.

          Somente quando, aos poucos, esse chantilly libidinal for sendo sendo consumido, é que começaremos a vislumbrar, de fato, quem escolhemos para estar a nosso lado. Não que se vá descobrir alguém pior mas, na maioria das vezes, será ao menos bastante diferente do que imaginamos ter visto inicialmente.

          Freud diz, com propriedade, que a paixão é um surto psicótico temporário onde tomamos uma pessoa que nada tem de excepcional, começamos a inflacionar seus atributos e terminamos por transformá-la em alguém valiosíssimo, incomparável. Se pessoas a nosso redor, que enxergam essa maravilha sem o filtro da libido, tentam nos alertar para algum erro, tendemos a ignorar e até mesmo romper com o incauto. Nessa fase, inclusive, vários casais se isolam em seu paraíso particular e acabam se distanciando de seus laços de amizade, o que costuma causar grandes problemas quando a fase de idílio se dissolve.

          Como nos acreditamos amados por um ser precioso, passamos a nos sentir preciosos também e essa é uma sensação da qual temos muita dificuldade em abrir mão. Exatamente por isso, se em algum momento a relação termina, nos sentimos como quem perdeu grande parte do próprio valor.

          Mas porque isso acontece com todos, dos mais lógicos aos mais românticos dos seres, dos mais ingênuos aos mais experientes? Ocorre que o único plasma que move e direciona todos os seres vivos, não é a evolução, não é o sentido da vida, é a reprodução e apenas ela. A natureza condiciona absolutamente todos os seres vivos aos mecanismos de sua auto perpetuação e obedecemos cegamente a seu plano, não temos escolha. Esse plano, diga-se de passagem, lega a registros secundários todo o resto. Note que as plantas florescem em cores, para que não falhem os mecanismos de reprodução; os pássaros têm plumagens, cantos e até coreografias especiais para atrair seus parceiros sexuais; os odores se alteram com os feromônios para que os animais sejam irresistivelmente atraídos para o acasalamento na época fértil.

          Mas nós, os seres humanos perdemos o que chamamos de instintos. Não temos mais um instinto sexual propriamente dito, embora a atração sexual permaneça.  Com o correr da evolução o instinto se transformou no que chamamos de pulsão. Qual a diferença? O instinto tem uma forma única de se satisfazer. Assim, um leão que tem fome precisa de carne sangrando, seja lá de quem ou do que for. Nós humanos precisamos que ela seja preparada de forma a disfarçar de algum modo a morte em que implica, com cortes, cozimento e temperos. Se o leão precisa de sexo, quer uma leoa, pouco importando que seja sua avó, irmã, mãe ou filha. O mesmo para a leoa, irmão, pai ou filho são parceiros sexuais possíveis. Em suma, para os demais animais as interdições civilizatórias não existem. Onde elas intervêm, o instinto desaparece.

          Para que a civilização pudesse funcionar, vários mecanismos tiveram que ser distorcidos. Para um humano, a prática sexual além de ter leis determinadas que implicam em muitas proibições, passa também pelas distorções implantadas em cada indivíduo. Tanto que, para que um humano sinta-se atraído por outro, além de atender às proibições de parentesco, é preciso que tenha a idade, altura e formato determinados, somados a critérios ainda mais sutis. Essas exigências variam de acordo com as condições que atuam sobre o sujeito. Mas apenas algumas delas, as que dependem do momento histórico, dos fatores sócio-estético-culturais e do local onde ocorrem são conscientes, como veremos mais adiante. 

          Mas voltemos à fase inicial e a nosso casal apaixonado. Uma instância interna, que todos possuímos, alertada para o fato de que alguém nos atrai, vai trabalhar no sentido de consumar a reprodução. Mesmo que o casal seja composto por duas mulheres ou dois homens por exemplo, mesmo que se trate de um casal que já passou há muito da idade reprodutiva. É uma instância cega, que apenas reconhece a atração sexual como uma promessa de reprodução. Essa instância mobiliza a libido para evitar que ela seja desperdiçada e atua sobre nós amenizando tudo que seja desfavorável no parceiro, conforme já vimos. E é nessa fase, submersos nessa veladura temporária, que estamos mais predispostos a assumir compromissos mais duradouros.

          Concorre para isso mais um mecanismo a que chamamos projeção. Como não temos flores coloridas, coreografias nem períodos de cio, precisamos da fantasia para que a libido seja acionada. É um mecanismo essencial porque os animais pela simples proximidade detectam o cio e “cruzam”. Para nós é preciso que esse desejo passe por muitos filtros e critérios, a que chamamos de representações, que serão projetadas, isto é, atribuídas a quem nos atraiu. Frases como “Ele me pareceu tão carinhoso e cuidador”,  “Via-se logo que ela era independente”, “Senti que ele era o que eu precisava para não ter mais inseguranças”, “Já na primeira conversa eu soube que havia encontrado uma mulher ao mesmo tempo guerreira e protetora” mostram a fantasia inicial em plena construção. Esses pacientes estavam descrevendo o que projetaram no primeiro contato, ou seja, sem qualquer prova de realidade.

          Quando finalmente o casal decide morar no mesmo endereço, quando suas escovas de dentes passam a habitar o mesmo armário, lenta e consistentemente o outro vai se humanizando, vai sendo descolado da fantasia e se concretizando como um ser comum. As pequenas diferenças começam a ficar visíveis e incomodar. Se no princípio conseguimos recobrir o que incomoda com mil adjetivos de perfeição, nesse momento a tendência é ao desnudamento, retirando um a um os bons atributos por pequenas insignificâncias cotidianas. Aparece uma enorme indignação porque a toalha úmida é deixada sobre cama, porque a roupa não foi guardada, porque há cabelos no box do banheiro, o lixo não foi colocado para fora, a xícara não foi lavada e guardada imediatamente após o uso, a demora para se aprontar é excessiva, há vaidade de mais ou de menos, dá excessiva importância à família de origem, passa tempo demais  em redes sociais ou jogos online. Depois vem a forma como partilham os gastos, um reparando em tudo que o outro compra e achando-o mesquinho ou esbanjador, não importa muito. Tudo isso vai atuando como uma espécie de solvente para a fantasia e para a libido. Começa o período das culpas e acusações. 

          Chamo esse período de guerra dos scripts, onde cada um tenta impor seus usos e costumes como leis universais. É gestado desde o início, mas começa a ser perceptível por volta do terceiro ano de convívio intensivo. Com isso, aos poucos, o brigadeiro inicial vai se transformando, mudando lentamente de cor e formato, surgem as primeiras nuances de verde e, quando menos esperamos, transformou-se em uma grande alface. É a metáfora para um sexo satisfatório, mas já não mais explosivo, um sexo que requer boa vontade e tempero de ambos os parceiros e que, com o tempo, pode se tornar desinteressante e não raro penoso.

          Isso traz questões adicionais quando o desinteresse acontece de forma assimétrica, ou seja, começa para um muito antes que para o outro. Problema porque, na sociedade humana, quando alguém diz “não tenho vontade de fazer sexo hoje” é entendido pelo outro como “não te amo mais”, estou te rejeitando. Parece-me que existe ainda a ilusão de que o casamento vá garantir um parceiro que forneça satisfação sexual permanente e obrigatória. Para evitar esse tipo de incômodo um dos dois acaba concedendo sexo sem qualquer vontade o que pode mesmo levá-lo a uma repulsa real. Nessa fase, a depender do casal, podem começar inclusive ofensas, onde a mulher insinua que o parceiro é impotente ou ele a acusa de fria. Com essas patologias imaginárias tenta-se ocultar a realidade da relação.

          Não vou me aprofundar nessa parte, mas a chegada de um filho costuma ser um fator de aceleração nesse processo.

          Claro que tudo isso parece muito pesado e inaceitável, mas não é novo. Você perceberá com certeza que nenhum casal que está junto há mais de dez anos parece super erotizado e enamorado. Pouquíssimos louvam ainda as virtudes do casamento. Não raro fazem piadas sobre sua relação e um sobre o outro, quando não fazem reclamações escancaradas.

          É possível fazer diferente? Talvez, mas ainda não vi acontecer. A grande questão é que amor e libido não têm necessariamente uma relação de dependência. No início a corrente terna e a erótica estão reunidas pela fantasia que acionou a libido e isso produz o apaixonamento e o melhor período de prazer sexual. Cada um está apaixonado por sua própria projeção – a que depositou no outro – e o conjunto de traços específicos que possibilitam isso. Na medida em que a corrente erótica, a libido, o nosso necessário chantilly, se desgasta, surge o humano sem véus e refratário a projeções.

          No entanto, todo convívio e adaptação de hábitos, a companhia, a rotina, o costume, vão formar o berço do amor, que nada tem a ver com sexo. Porque podemos perfeitamente desejar alguém a que vemos na rua, na piscina, na tela de cinema, no filme pornográfico, sem ter a menor ideia de quem seja, ou seja, para o sexo o amor é totalmente dispensável.

          O fato é que, separadas as correntes terna e erótica nada mais as fará unir-se. O que fazer? As soluções são muitas e particulares de cada casal e cada indivíduo. Alguns casais aplicam-se a outras atividades onde usam sua libido. Sim, porque tudo que fazemos com prazer é feito com a mesma libido sexual, pintar, viajar, praticar esportes, frequentar festas, restaurantes, cinemas, investir em um hobby, praticar voluntariado. Alguns começam a ter “brigadeiros” ocasionais fora do casamento. Essa opção é bem utilizada por ambos os sexos, mas como as mulheres são mais discretas e cuidadosas apenas os homens levam a fama.

          O relacionamento aberto é uma opção que tem sido bastante adotada, mas exige que o casal tenha uma estrutura ética e psíquica especial. Há o aberto explícito, onde um comunica ao outro que vai sair com alguém e o tácito, onde fica permitido, mas os parceiros preferem não ser informados. Há casais que fazem uma lista de regras, como não permitir que se saia com amigos comuns, por exemplo.

          Isso não significa que o casamento é algo fadado a não dar certo, significa apenas que devemos reajustar o que esperamos dele àquilo que realmente pode nos oferecer. A sociedade nos promete algo que jamais entregou a ninguém: harmonia e desejo sexual permanentes. Embora nenhum casamento tenha dado a ninguém o que prometeu todos os que se dispõem a casar partem com a ideia de que, no caso deles, será diferente.

          Enquanto perdermos tempo e energia comparando o que esperávamos com o que o casamento pode oferecer realmente, vamos enfrentar decepção, frustração e às vezes até mesmo uma incontável troca de parceiros em busca do verdadeiro amor. O casamento já foi oferecido no passado com muito mais realismo, esse modelo que promete eterno amor é bastante recente. Recomendo o vídeo da historiadora Mary del Priore “O casamento entre o amor e o sexo”, facilmente encontrável no Youtube.

          Casamento, para quem quiser tentar, é um lugar de parceria, haja ou não filhos, um lugar de onde cada um dos parceiros deve estar disponível para dar suporte às angústias e necessidades do outro. Ninguém entra em uma relação decidido a transformar-se totalmente somente em função de atender ao que o outro deseja. Seria razoável que não esperasse um outro empenhado em atendê-lo em tudo, à custa do sacrifício do próprio desejo.

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