Cuando Narciso murió, el río de sus delicias se transformó de una copa de agua dulce en una copa de lágrimas saladas, y las Oreades vinieron llorando por los bosques a cantar junto al río y a consolarle.
Y cuando vieron que el río habíase convertido de copa de agua dulce en copa de lágrimas saladas, deshicieron los bucles verdes de sus cabelleras. Y gritaban al río, y le decían:
-No nos extraña que le llores así. ¿Cómo no ibas a amar a Narciso, con lo bello que era?
-Pero ¿Narciso era bello?
-¿Quién mejor que tú puede saberlo? –respondieron las Oreades. – Nos despreciaba a nosotras, pero te cortejaba a ti, e inclinado sobre tus orillas, dejaba reposar sus ojos sobre ti, y contemplaba su belleza en el espejo de tus aguas.
Y el río contestó:
-Si amaba yo a Narciso era porque, cuando se inclinaba en mis orillas dejaba reposar sus ojos sobre mí. En el espejo de sus ojos veía reflejada mi propia belleza.
(Oscar Wilde, O discípulo)
Narciso e o narcisismo podem refletir, ao menos para o entender psicanalítico, tanto quanto o espelho, embora o que possamos ver aí refletido não tenha a perfeição geométrica da imagem, mas a imprecisão do que é humano. Talvez porque o espelho seja, ele também, narcisista, o conceito de narcisismo mostra-se, quantos mais sejam os autores que se consulte, de tal maneira multifacetado e abrangente que suscita questionamentos acerca das modalidades que abrange e não comporta qualquer tipo de aplainamento. Nas buscas através de leituras que embasem torna-se claro que a ramificação em nuances conceituais se adequa melhor ao termo do que à singularidade absoluta.
Podemos identificar na teoria freudiana um ponto de vista onde as atividades de autoconservação, com suas implicações na realidade, constituem a base pulsional do eu na satisfação autoerótica, e delineamentos mais acentuados do conceito em textos como o da análise empreendida por Freud do caso Schreber, onde encontramos a definição de narcisismo como uma etapa no desenvolvimento da constituição do eu. Em Uma introdução ao Narcisismo, Freud retoma a questão da gênese do eu que, a partir do autoerotismo e da parcialidade da pulsão, fica sujeita ao investimento da libido. Freud parte da hipótese de que os primórdios da sexualidade infantil estariam vinculados a um mecanismo de apoio nas funções nutricionais. Primeira fonte de satisfação, a alimentação se processa pelas vias de uma zona erógena, a boca, também nosso instrumento inicial de exploração do mundo e, acoplada a essa atividade, a pulsão sexual surge como um desvio do instinto, no autoerotismo dado pela repetição de uma vivência de satisfação já obtida. Importa observar que, se supomos essa repetição, devemos supor a existência de um outro agindo como elemento, desde o princípio, propiciador da vivência satisfatória.
No autoerotismo o prazer obtido provém de sensações oriundas da fragmentação corporal vivenciada por algo igualmente fragmentário. Acerca dessa ideia seria interessante pensar se a chamada falta de unidade corporal pode ser assim descrita já que, para que se pense em fragmentação deve-se poder imaginar algo da ordem de uma unidade processadora capaz de posteriormente, determinar a desfragmentação. Como sabemos que essa unidade anterior dificilmente poderia ser teorizada de maneira sustentável, teríamos que pensar uma unidade externa, completa, narcisizada, que pudesse prover a argamassa dessa sedimentação. Essa liga, será dada pela narcisização do bebê pelo casal parental.
É importante pontuar, portanto, que o autoerotismo é diferente da fase narcísica, na qual penetramos pela diferença do eu, que adiciona essa ação psíquica necessária à criação do narcisismo. O eu é, a um só tempo, objeto que pode ser libidinizado e reservatório da libido que será enviada aos objetos, mas que poderá ser retomada (retornar ao eu).
Se tínhamos até este ponto uma evolução libidinal, vemos agora a passagem do autoerotismo para o narcisismo intermediada pela atitude dos pais, o que nos dá a noção de que esse primeiro narcisismo vem de fora. Para os pais o bebê é o ideal e, ao olhá-lo, vêm concretizadas tal maximização de seus ideais de perfeição, que Freud chamará, ao que o bebê recebe dessa forma, de eu ideal. Freud enuncia que “o narcisismo nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida pode justificadamente ser atribuído a toda criatura viva.” Não haveria mãe disposta a fazer o que usualmente faz por seus filhos caso fosse capaz de os pensá-los como outro. Criar um filho é uma tarefa longa, cansativa e angustiante, que pede uma explicação para tanto empenho e aparente prazer. O que acontece, de fato, é que fazemos pelos filhos como se fizéssemos por nós mesmos, tal é o grau de narcisismo que impregna essa relação.
Seria interessante ainda refletir sobre a semelhança e a distância entre o narcisismo que justifica o delírio megalômano e o narcisismo que nos leva a escolher para objeto de amor alguém gostaríamos de ter sido. Se tentássemos identificar narcisismo com egoísmo, terminaríamos no paradoxo de identificar egoísmo e generosidade. Os mecanismos que nos movem a identificarmo-nos com o outro e fazê-lo objeto de nossa generosidade devem-se quase sempre à nossa possibilidade de vermo-nos a nós mesmos no outro e às nossas necessidades nas suas. Não é, ao menos para a psicanálise, novidade nenhuma a relação entre generosidade e onipotência, onipotência e narcisismo.
Um dos ângulos dos quais se pode ver o narcisismo é o de uma relação de amor consigo mesmo que se transforma numa demanda: a demanda de ser objeto do amor de um outro alternando as posições Narciso/Espelho para perpetuá-las. O eu ideal cristaliza-se como uma referência permanente, uma ilusão e um modelo ao qual o eu sempre buscará retornar: uma posição na qual estava a perfeição narcísica e na qual se assenta a ilusão de ter sido amado e admirado incondicionalmente.
Parece-nos que os pais, para poder atribuir aos filhos esse lugar majestático da projeção do próprio narcisismo terminam por impor-se a si mesmos limites que poderíamos chamar anti-narcisistas, na medida em que cedem ao outro aquilo que não puderam ter para si. Se pensarmos que esse outro é visto como continuação dos próprios pais, invertemos evidentemente o raciocínio, mesmo que não se possa dizer sem ressalvas que o peso de um investimento feito naquele que dá continuidade ao indivíduo e o investimento no próprio indivíduo, possam ser consideradas coisas de idêntica natureza. É como se o amor implicasse na narcisização para que a constituição se efetuasse em dado momento e, em sua retirada, para que a estruturação pudesse realizar-se, em outro momento. O narcisismo de que os pais embebem sua relação com os filhos semeia o solo psíquico para o surgimento do eu ideal, que por sua vez desbasta o terreno para que o ideal do eu alcance sua posição.
Com a introdução do narcisismo, o eu pode posicionar-se como rival do objeto na disputa pela libido. O narcisismo primário poderia ser imaginado como uma espécie de consciência incipiente de si, ainda que fragmentária. Apesar da presença já concreta do outro, a questão da escolha entre libidinizar a si ou ao outro não está colocada, já que o outro é muito mais uma fonte propiciadora de vivências do que uma alteridade.
Em Uma introdução ao Narcisismo, a propósito da vida erótica das pessoas, Freud define a escolha de objeto anaclítica e a narcísica. Em oposição às escolhas que são de caráter mais narcisista, Freud indica que seria possível a escolha por um modelo que se traduziria por uma espécie de agradecimento a um outro, a que chama de escolha anaclítica e que tem por modelo um dos pais. Mas é inusitado pensar em termos não-narcísicos o amor que nos narcisizou e cuidou por toda uma vida. O que se pode depreender dessa observação é que as escolhas estão sempre marcadas pelo narcisismo e que dificilmente se poderia determinar aquelas a que ele não contamina.
A escolha objetal deriva, na verdade, das primeiras experiências de satisfação. Freud estabelece uma divisão entre os tipos de escolha possíveis e chama ao primeiro tipo de escolha anaclítica ou de ligação: ama-se segundo o modelo do amor recebido na relação com as figuras parentais, aquela que alimenta, aquele que protege. O modo de escolha anaclítico, segundo Freud, é o modo de amar tipicamente masculino. A escolha feminina corresponderia mais frequentemente ao segundo tipo que é o da escolha tipicamente narcísica. A mulher, enuncia Freud, ama ser amada. Mas, ainda que as coisas por vezes funcionem da maneira descrita, o próprio Freud é levado a perguntar-se que razão teriam os homens, tão anaclíticos, para se apaixonar por narcisistas; por que razão sentir-se-iam atraídos por quem ama ser amado, se não por identificarem aí uma condição que reconhecem através de seu próprio narcisismo?
Freud afirma que os dois modos de escolha de objeto (narcísica e anaclítica) podem ser utilizados por qualquer indivíduo, já que dispomos todos, originalmente, de dois objetos: o próprio eu ou aquele que cuidou de nós. A divisão entre os dois tipos de escolha não se faz, evidentemente, através de uma linha tão nítida quanto se poderia desejar. Se a escolha anaclítica se baseia num modelo primário de relação com o objeto e o eu se encontrava no lugar do objeto do amor parental, isso demonstra a dimensão essencialmente narcísica também nesse caso. Poderíamos pensar ainda que, em diferentes momentos de uma mesma relação, a ênfase dos investimentos pode recair sobre o eu ou sobre o objeto, resultando numa variação adicional na escolha.
A necessidade de ser amado e desejado pelo outro é certamente um fator de aprisionamento, mas também de estímulo à transformação, independentemente do tipo de escolha e de haver ou não uma diferença de fato entre elas. Há uma clara postura narcisista no desejo de tornar-se objeto de amor do outro, há também uma admissão de incompletude, de necessidade do outro que poderíamos, talvez, pensar como uma atitude, esta sim, menos narcísica.
André Green observa que os narcisistas nos irritam mais que os perversos. Não sem um certo sarcasmo, afirma que isso ocorre porque talvez nos seja possível sonhar com sermos objeto do desejo de um perverso enquanto o objeto do narcisista não pode ser outro que ele mesmo: “Narciso nega Eco como os analisandos que não entram em transferência nos ignoram magnificamente”. Refere-se aos narcisistas como pessoas feridas, carentes do ponto de vista do narcisismo. Como frequentemente as feridas que não se cicatrizam são devidas a ambos os pais, pergunta-nos se eles podem realmente amar algo além de si mesmos.
As realizações do que chama de narcisismo de vida, que se realizam nos investimentos em objetos concretos ou idealizados, nunca são totalmente bem sucedidas. O descentramento promovido pelo desejo coloca o sujeito na busca pelo objeto de satisfação, fazendo o “sujeito viver a experiência de que seu centro não está mais nele mesmo”. Por outro lado, a ambição da autossuficiência afetiva mostra-se também ilusória: o eu jamais consegue substituir completamente o objeto. Quando é possível abandonar toda busca de satisfação, a vida torna-se equivalente à morte “porque é o alívio de todo o desejo”. Introduzindo a matiz do narcisismo de morte, o prazer não será deposto pelo desprazer, mas pela indiferença, a anorexia de viver, verdadeira petrificação do eu que visa a inércia na morte psíquica. Com essas fortes imagens André Green nos tenta dar a dimensão do sentido e do objetivo do narcisismo de morte.
Seria o narcisismo uma fantasia? Teríamos de fato algum dia sido capazes de amar mais do que a nós mesmos? Todos podemos provavelmente lembrar de momentos em que, frequentando os primeiros anos de escola, afastados do ambiente e das pessoas que conhecíamos, nos deparávamos com alteridades e diferenças mais acentuadas. Alunos do segundo ano, víamos os alunos do terceiro como “inimigos enormes e agressivos”. O inimigo era promovido conosco e, assim, ao atingirmos o terceiro teriam se deslocado para o quarto. Temíveis eram ainda os estranhos de outro bairro; talvez permaneçam ameaçadores para muitos, mesmo depois de adultos, os muito pobres e os demasiadamente ricos, talvez os muçulmanos se formos católicos ou protestantes. O narcisismo talvez possa ser visto longe das patologias comuns perambulando também entre os xenófobos, usando a máscara da Ku-Klux Klan. Traveste-se em piedade nas famílias sensibilizadas que se dispuseram a adotar as loiras crianças órfãs do massacre de Srebrenica (1995) mas que ignoraram, como a maior parte da imprensa, a orfandade, a fome, a miséria absoluta dos órfãos do genocídio Tutsi em Ruanda (1994). Suspeito e temível continua sendo tudo o que não cabe no espelho.
Não cabem aqui julgamentos morais, mas a provocação nossa a percepção de que o narcisismo nos leva a escolhas compatíveis com algo que tenha semelhanças ou partes semelhantes a nós mesmos, algo com que possamos nos identificar e fecha, com uma barreira muito pouco permeável, nosso acesso afetivo ao diferente.