Não se deve dizer tudo o que se pensa. É a regra básica para o funcionamento de grupos. Por isso mesmo, quando um casal resolve se casar, as famílias dos noivos não costumam expressar sentimentos negativos abertamente. Pelo menos no princípio. De modo geral, por maior que seja a desaprovação da mãe do noivo em relação à escolhida, ela dirá que ganhou uma filha e coisas do gênero. Claro que ela não sabe o que ele viu na garota, já que não sabe cozinhar e se veste de uma forma estranha. A mãe da noiva também dirá que ganhou um filho. Que é meio imaturo e parece que não faz nada sem falar com a mãe, mas enfim, é escolha dela. Isso tudo constitui a formalidade de praxe que vai se tornar, no devido tempo, parte de uma grande encrenca. Quem se casa deve, portanto, ter em conta que, junto a quem escolheu leva, de quebra, o casal de sogros e mais cunhadas e cunhados se existirem. Alguns sobrinhos com educações variadas também podem fazer parte do pacote obrigatório.
Junto a tudo isso leva também, quer saiba disso ou não, seu próprio script, segunda fonte garantida de encrencas. Script é a lista que cada um de nós traz, sem perceber, de “certos e errados”. Coisas grandes e pequenas que os pais nos ensinaram como corretas. O tubo de dentifrício deve ser apertado a partir de baixo e não do meio; ao levantar-se da mesa tire seu prato; toalha usada tem que ser posta no varal para não mofar; o banho diário deve ser tomado pela manhã; não, tem de ser à noite para não “sujar” os lençóis. Os dentes têm de ser escovados ao levantar ou após o café da manhã? Louça tem que ser lavada logo após a refeição. Então se um resolve ver um pouco de TV no sofá para lavar a louça depois o outro se sentirá quase desacatado. Isso é só uma amostra de coisas insignificantes que podem se tornar um pesadelo. Porque o “meu script” é sempre muito melhor que o seu, é o certo. Claro, porque somos tão sem noção, tão arrogantes, que sempre achamos que nosso script é universal. Como assim tem quem faça diferente disso?
Seus pais provavelmente têm uma porção de “defeitinhos” que você conhece bem. Sua mãe tem a mania de perguntar coisas sobre assuntos constrangedores nos quais não teria que se intrometer. Não adianta explicar, ela não muda. Mas tudo bem, você já se acostumou, acha que é apenas ingenuidade. Seu pai liga a qualquer hora e com vídeo, faz isso com frequência, mesmo que os dois trabalhem e tenham pouco tempo para ficar juntos. Mas você sabe que ele não faz por mal. Suas irmãs começam a fazer piadas que só quem viveu a infância junto entende e, ainda por cima, têm o hábito de ficar revivendo episódios que deixam seu par totalmente excluído.
Já os pais de seu par são insuportáveis. O sogro é o verdadeiro dono da verdade e critica a tudo e a todos de forma pouco cuidadosa. Fazer piadinhas inconvenientes e sem graça são sua especialidade. Para completar sua sogra é uma vítima profissional, queixa-se de tudo e sofre mais que todos. Não há assunto possível, tudo tende a motivos para lamúrias intermináveis. Você acha que, no fundo, ela é apenas uma pessoa que não quer fazer nada que lhe dê algum desprazer, não quer compromisso de cuidar de nada e vive se queixando de sobrecarga.
Não é raro, em resumo, que a família de um dos dois ignore solenemente o outro lado do par. Cada um dos dois, por sua vez, acha que a própria família tem que ser relevada, mas não faz esforço equivalente no sentido contrário. O movimento comum é que cada um tente apontar os defeitos dos pais do par enquanto pede compreensão para os próprios pais. E isso sempre, sempre mesmo, vai dar errado.
Tudo pode ser ainda pior quando um dos dois tem filhos de um casamento anterior. Tendemos a amar incondicionalmente nosso rebento e achar que amá-lo é uma coisa natural, quase inevitável. É olhar e se apaixonar. Só que não. É preciso aceitar que, para o outro, essa criança é um estranho. Não a viu nascer, não a esperou. Jamais a amará como a um filho. Deve-se entender que o um bom padrasto ou madrasta conseguirá amá-lo, no máximo, como se ama a um sobrinho. Isso se tudo der muito certo.
Sabe aquela criança que anda berrando pelo restaurante com dois outros monstrinhos e não te deixa comer sossegado? Que tem uma crise de birra e um fôlego de mini cantor de ópera e faz escândalos que duram meia hora? Aquele sobrinho ou filho de amigos que mete o dedo nos botões do seu som, pega o castiçal da mesa para brincar enquanto os pais fingem demência? Você consegue pensar que é apenas uma criança, consegue amá-lo como a seu filho? Certamente não. Você é apenas humano.
E qual a solução? Não me considero particularmente cristã, mas devo reconhecer que Cristo fez algo de realmente notável. Impôs a nós todos a única lei que jamais seremos capazes de cumprir: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”. Não disse “ama ao idêntico” e sim ao próximo! O vizinho funkeiro com aquela caixa de som potente que vive num fuso horário próprio; o iniciante que ensaia saxofone duas horas por dia; o cunhado que pediu dinheiro emprestado e não pagou. Você não consegue? Nem eu. Aliás somos incapazes mesmo de amar como a nós mesmos até ao amigo mais próximo. Quando muito, se temos uma afetividade bem desenvolvida e adaptada às demandas de nossa sociedade, conseguimos amar à nossa prole. Mas por um motivo narcísico: vemos em nossos filhos uma espécie de upgrade de nós mesmos, uma segunda chance de vida.
Como isso pode ajudar? Na verdade, há uma adaptação possível do que Cristo nos pediu que seria agir “como se” amasse. É uma ação bem mais simples e que também é conhecida pelo nome de civilidade. Aja com sua sogra lamurienta como faz com sua mãe intrusiva.
Em relação a filhos reconheça sua própria incapacidade de amar incondicionalmente a filhos de outros e entenda a posição delicada em que se encontra o cônjuge que entra no casamento adquirindo um combo que não comprou só porque se apaixonou por você. Ele não vai amar seu filho, não porque seja um adulto problemático, mas porque isso não é possível. Você precisa facilitar a ele a convivência para o bem dele, de seu filho e de seu casamento. Eduque, tenha senso crítico. Dê-lhe poder de repreender e não se meta quando isso acontecer. Cuide de tudo que for relativo a seu filho quando ele estiver com vocês. Seja você homem ou mulher, a obrigação é sua. Agradeça quando o outro o ajudar espontaneamente. Obrigue seu filho a respeitá-lo. Quando tiverem um filho em comum não acuse o outro de amá-lo mais que aos filhos que você trouxe de outro casamento como se fosse alguma espécie de crime. Mas você pode exigir sim, sem dúvida alguma, que ele aja “como se” amasse, porque uma criança não entende desses meandros e não pode ser prejudicada.
Em resumo, aceite que os scripts são variados, que não há certo ou errado. Reconheça aquilo que você não é capaz de fazer e não tente obrigar o outro a fazê-lo. Não vou dizer que é simples. Não é. É bem complicado. Mas tentar baixar o narcisismo e aumentar o senso crítico sempre ajuda.