A inútil evitação da fragilidade

O homem contemporâneo é um ser extremamente mimado. Não me refiro é claro aos que vivem à margem, porque o medo de que lhes falte a comida de amanhã preenche o dia de hoje. Entre os miseráveis a filosofia em geral não prospera, como pouco floresce onde tudo falta. Refiro-me aos que, centímetros acima ou abaixo de nós na pirâmide, têm uma condição de vida que implica ao menos uma maior dignidade.

A pós-modernidade deixou claro que o tal direito a ser feliz é uma babaquice sem fim, que ninguém é um ser-especial-maravilha-excepcional, mas o humano permanece vítima de suas crenças sem se decidir pelo luto. Continua a se achar especialíssimo e fazer textos sobre suas mazelas de desconfortos e a interessar-se pela dor do outro tanto quanto o outro se interessa por suas fotos de pratos cheios em restaurantes aleatórios. Tende a acreditar no like misericordioso que é dado para contar com o seu na próxima.

Concordo que o homem está num lugar bastante ameaçador. Navega numa minúscula pedra mal solidificada por um espaço vazio, silencioso e escuro sem saber qualquer coisa sobre o motivo ou sobre o que acontece depois. Não tem quaisquer respostas e tampouco a quem perguntar. Inventa Paraísos, Valhalas, reencarnações. Receoso de que a resposta verdadeira seja muito diferente da que gostaria, tenta criar ordem e sentido com manobras razoavelmente perigosas.  

De todos os animais na terra somos os únicos que sabemos que no final tudo dará errado. Vamos envelhecer, sofrer, morrer. Mas os que ousam falar sobre isso, que aliás é de todos sabido, são linchados, evitados, taxados de pessimistas e até sádicos. Não, não queremos saber de nada disso. Vivemos sequiosos de encontros, festas, bons vinhos, o que, adianto, acho excelente. O problema é que buscamos uma coisa para camuflar a outra.

Desde milhões de anos, provavelmente, um dos mais fortes fatores de sobrevivência foi a capacidade de ignorar a realidade de nossa fragilidade e desamparo. Atribuíamos força de proteção a plantas mágicas, animais com ligações insuspeitas com o universo, constelações fornecedoras de sentido. Figas, patuás, orações, a tudo nos apegamos para controlar o incontrolável. Toda nossa cultura está baseada num plano de negação da morte. Fala-se em futuro, felicidade, na possibilidade de viver cem anos. Próteses vitamínicas e exercícios. Eternidade.

Tanto a certeza da morte quanto a angústia relativa a isso são constitutivas do humano. O bebê, sem que tenha ainda engendrado um ego, apoia-se no narcisismo parental para a construção de um projeto que lhe permita enfrentar essa angústia. Movimenta-se dentro de um projeto heroico, transmitido pelos pais, que permita conter a angústia de forma a não paralisar e conseguir negar, sem refutar, a certeza da morte.  Essa é uma ideia do livro A Negação da Morte, de Ernest Becker. Para ele o grau de adaptação do indivíduo estaria ligado ao nível de encobrimento que o projeto heroico consegue trazer para ele. Nesse sentido, os que melhor mentem para si mesmos, os que se enganam de forma mais convincente, estariam mais bem adaptados. Caso as angústias se descontrolem é sempre possível mais uma mentira tamponadora. Ele as chamou de mentiras caracterológicas ou mentiras vitais. São mentiras que operam tão fundo no psiquismo que dispomos de eficientes mecanismos para impedir que a consciência que poderia aboli-las venha à tona.

Tudo isso cintilou e boiou ameaçadoramente na superfície da pandemia. O homem acaba se vendo como o que é, uma espécie de Deus amarrado a um corpo que apodrece. Um corpo que se desfaz sob o ataque da mais primitiva e tosca das criaturas, um vírus que nada sabe além de se replicar infinitamente.

É verdade que os que são muito fortemente tomados pelo medo acabam por paralisar. Mas tudo depende do momento. Onde a vida está no ritmo da suposta normalidade, funciona. Mas em tempos de ameaça, guerras, pandemias, terremotos, o mecanismo de negação é extremamente perigoso. Uma grande parte dos que encontraram sequelas graves e mesmo a morte poderiam ter sido poupados se tivessem acionado mecanismos de continência. Esses se contaminaram em festas, viagens de recreio, contatos sem proteção, enfim todo tipo de risco que poderia ser evitado. É o momento em que as mentiras protetoras passam ao campo contrário.

A passagem do Capitalismo de Produção ao de consumo teve que buscar formas para a expansão econômica. Uma delas foi a criação de um novo mercado de necessidades. Veio com ele um modelo de felicidade que pode ser mensurado por uma lista de itens que comportam bens variados. A lista é ampla. Inclui o tipo de casa e tamanho, localização, mobília, os eletrônicos de última geração e, principalmente, as chamadas experiências. A lista foi incorporada de forma definitiva ao significado de vida propriamente dita. Muitas pessoas de quem ouço os relatos sofrem por sentir que estão perdendo a vida, por privações insuportáveis, que ficam localizadas entre uma gama que está entre ir a bares, shows ou fazer viagens. Viagens que muitos de nossos avós e bisavós nunca tiveram ou quiseram.

As grandes epidemias do passado impactaram a gestão pública, a economia, a organização da força de trabalho, a ciência e a tecnologia. Mas do ponto de vista moral praticamente não nos afetaram em nada. Ao contrário, o que de fato vi foram os privilegiados mais preocupados com suas perdas em moeda e diversões do que com o problema de populações periféricas que transportavam nossos alimentos e faziam compras em supermercados e lojas para que eles permanecessem protegidos. Até onde pudemos ver a riqueza dos ricos aumentou enquanto o valo da pobreza se aprofundava. Moralmente não vejo sinais de que tenhamos crescido em alguma coisa.

Freud percebeu que só conseguimos viver a felicidade por alternância. Ninguém apreciaria os finais de semana se não tivesse trabalhado por vários dias. Nem as férias se não trabalhasse meses. Assim funcionamos nós. A pandemia nos obrigou ao isolamento, a conviver mais com nossa condição insignificante e finita sem as distrações habituais.  O prazer vai depender muito características individuais e do que cada um se diz sobre. Houve quem tenha gostado de conviver mais com a família, não ter que aguentar o chefe pessoalmente ou não enfrentar horas no trânsito. Há quem tenha tido saudades do trânsito e ansiasse por férias da família.

Mas o grande ganho, certamente foi o da criatividade. Acuado, o ser humano continua acionando mecanismos para transformar finitude em eternidade, dor em prazer. A dor é dada, mas o prazer tem que ser conjurado. Na conjuração, a realidade se transforma através do que nos dizemos sobre ela que, como uma mulher, torna-se sedutora se amorosamente a desejarmos e dissermos bela. 

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